O monólogo de Erin Greene

Erin Greene é uma personagem da série “Missa da Meia Noite”, dirigida e roteirizada por Michael Flanagan. Está disponível na Netflix. O monólogo da personagem aparece no último episódio da série e está transcrito à seguir. Que traga reflexões à todos que lerem e eu tenho certeza que você caiu aqui porque procurou o monólogo transcrito…

“O que acontece?

O quê?

Quando morremos?

O que acontece?

É, o que acontece?

Então,o que acontece quando morremos?

Falando por mim mesma?

Por você mesma.

Eu mesma.

É esse o problema.

É esse o problema com a coisa toda.

Essa ideia, “nós mesmos”.

Não é essa a ideia.

Não é isso, não é…

Não é.

Como fui esquecer isso?

Quando esqueci?

O corpo morre célula por célula, mas os neurônios continuam em atividade.

Pequenos relâmpagos, como fogos de artifício, achei que ficaria desesperada ou com medo, mas não sinto nada disso.

Nada disso.

Estou ocupada demais. Estou ocupada demais neste momento. Me lembrando.

É claro.

Eu lembro que cada átomo do meu corpo foi criado em uma estrela.

Esta matéria, este corpo é basicamente espaço vazio.

E a matéria sólida?

É apenas energia vibrando bem devagar, e não há um “eu”. Nunca houve.

Os elétrons do meu corpo dançam e se misturam com os elétrons do chão embaixo de mim e do ar que já não respiro.

E eu lembro que não existe um ponto onde tudo isso acaba e eu começo.

Eu lembro que sou energia. Não memória.

Não um “eu”.

Meu nome, personalidade e escolhas vieram depois de mim.

Eu existia antes deles e existirei depois tudo o mais são imagens que recolhi pelo caminho.

Sonhos fugazes impressos no tecido do meu cérebro moribundo.

E eu sou a eletricidade correndo por ele. Sou a energia ativando os neurônios, e estou voltando.

Só de lembrar, estou voltando pra casa.

Como uma gota d’água voltando pro oceano, do qual sempre fez parte.

Todas as coisas… uma parte.

Todos nós… uma parte.

Você, eu, minha menina, minha mãe e meu pai, todos que já viveram, cada planta, animal, átomo, cada estrela, cada galáxia, tudo.

Há mais galáxias no Universo do que grãos de areia na praia.

É disso que falamos quando dizemos “Deus”.

O único.

O cosmos e seus sonhos infinitos.

Somos o cosmos sonhando consigo mesmo.

O que acho ser minha vida é simplesmente um sonho, toda vez.

Mas me esquecerei disso. Sempre esqueço.

Sempre esqueço meus sonhos.

Mas nesta fração de segundo, no momento em que eu lembro, no instante em que lembro, compreendo tudo de uma vez.

Não existe tempo.

Não existe morte.

A vida é um sonho.

É um desejo.

Feito repetidamente por toda a eternidade.

E eu sou tudo isso.

Sou tudo que há. Sou o todo.

Sou o que sou.

Midnight mass in 2021 | Mass, Greene, Erin

Chernobyl: No rastro do vento negro

“A pequena Marina perguntou à minha mãe: “Professora, por que é que nossas avós fizeram o sinal de cruz para o nosso trem?” Os olhos de minha mãe expressaram profunda dor. Minha mãe que vinha encorajando a todos sem descanso, correu para a plataforma do vagão e chorou em voz alta.”

*Texto publicado no site Causas Perdidas, em 2013

Tempo atrás estava no Terminal Barão Geraldo, quando fui ver a oferta de livros do bazar de um asilo do bairro que sempre está por lá em algumas semanas do mês. Sempre encontro livros interessantes a um preço muito acessível (no máximo seis reais). No meio de uns vinte títulos, um livro de capa amarela chamou-me a atenção. Com o título de “Bonecos de Neve e Chernobyl”, o livro que estava despercebido foi levado comigo após eu ter pagado dois reais por ele. Sim, dois reais. O conteúdo do livro é bem interessante, e ao mesmo tempo dá uma tristeza sem fim. Gosto muito de histórias e relatos, e, creio que o relato de quem viveu todo o contexto de uma tragédia sem precedentes, enriquece e dá muito mais credibilidade ao contexto. O livro que me custou a bagatela de dois reais, ou um suco de laranja da barraca de pastéis que fica do lado do terminal, deu-me uma semana de reflexões sobre os prós e contras da energia nuclear. E por qual motivo? Bem, para entender, vou contar a história deste livro que infelizmente não tem mais edições, podendo ser encontrado apenas em sebos e em sites que vendem coisas usadas.

Imagine ler relatos de crianças e adolescentes que tiveram a infância minada por dores, injeções de iodo, sessões intermináveis de quimioterapia, muitas delas esperando apenas que a morte chegue? Enquanto o governo não avisava os perigos da radioatividade para o população, jovens comiam hortaliças frutas e nadavam em águas contaminadas. Era primavera em Pripyat, cidade da Ucrânia onde fica a usina Vladimir Ilyich Lenin, conhecida como Usina de Chernobyl. As crianças gostavam de sair para colher bétulas. Depois do dia 26 de abril de 1986, as bétulas foram cobertas de poeira assassina. Após o acidente, e quando finalmente o governo alertou os moradores sobre o perigo da região, as pessoas não sabiam mais o que fazer. Entraram em pânico, os mais velhos, resistiram, sendo que vários deles foram encontrados mortos em suas casas, dias depois pelos “Exterminadores/Liquidadores”. Esta tragédia dramática levou as pessoas a pensarem mais sobre a história do país, sobre a importância da terra natal. Uma história que retrata o quão importante é a contribuição do povo ao país. Neste livro, temos o relato de 25 crianças e adolescentes que viveram com o perigo da radiação e a saudade da terra natal. Além dos depoimentos, temos fotos e ilustrações. A coletânea da edição brasileira foi retirada de “Rastro do Vento Negro”, que foi publicada na Bielorússia e de uma versão editada no Japão, e foi publicada 10 anos depois do acidente, tendo toda a renda da comercialização destinada às crianças vitimadas pela poeira radioativa do acidente. O livro foi viabilizado com a contribuição voluntária de tradutores e revisores, muitos deles, anônimos. A tradução foi feita da edição japonesa e russa, e foi possível a tradução de apenas 25 dos 100 textos que foram selecionados de 500 redações enviadas para o concurso “Chernobyl e Meu Destino”, pois foram encontradas dificuldades em achar tradutores dos idiomas, sendo que na versão russa, a presença de dialetos locais dificultava ainda mais o trabalho. Foram duas edições do livro, e sua tiragem foi de 3000 exemplares cada edição.

Em 26 de abril de 1986, o reator 4 da usina explodiu à 1 hora e 23 minutos, durante um teste, liberando na atmosfera e nos arredores, cerca de 50 milhões de curies de radionuclídeos, 400 vezes mais do que foi liberado em Hiroshima e Nagasaki, durante o lançamento da bomba nuclear em 1945. Falando em níveis de radiação, com o acidente, a escala de radioatividade nos arredores ficou entre 40 milhões de curies de Iodo 131 e cerca de 3 milhões de curies de Césio 137, além de Estrôncio 90 e Plutônio . Estas foram as principais substâncias tóxicas que ceifaram muitas vidas. Além delas, teve emissões de gases nobres, tais como Criptônio 85, Xenônio 133. O Césio 137 tem meia vida de 33 anos. Mas o que é meia vida? O termo meia-vida é o intervalo de tempo para que a substância pare de emitir metade de sua radiação. O Césio 137 espalha-se no sistema muscular e causa mutações genéticas degenerativas. O Estrôncio 90 tem meia vida de 29 anos. Foi o radioisótopo causador de leucemia, pois ele se irradia na medula óssea. Iodo 131 possui meia vida curta, cerca de oito dias, mas foi o principal causador do câncer na tireoide nas pessoas que moravam na chamada “Zona de 30 km”, região que teve o maior índice de contaminação radioativa. Cerca de setenta por cento do território da República da Bielorússia foi atingido. Segundo estimativas, cerca de 2,3 milhões de pessoas sofrem com as sequelas da contaminação radioativa, sendo 500 mil delas, crianças, isso em 1994. Na região dos 30 km, ocorreram alterações na genética de animais e plantas. Foi o maior acidente nuclear da história, tendo além de mortes e muitos feridos até hoje devido às consequências dos lançamentos de substâncias radioativas na atmosfera e solo, houve também uma considerável perda econômica.

A evacuação da maior parte da região ocorreu no dia 27 de abril de 1986, após a Suécia perceber que houve um aumento dos níveis de radiação. Até o dia 20 de julho de 1986 faleceram 28 pessoas e cerca de 30 estavam internadas em estado grave, foram vítimas da Síndrome da Radiação Aguda, que atinge cerca de metade dos indivíduos que receberam altíssimas dosagens de radiação. As vítimas desta síndrome estavam entre os bombeiros, médicos e os mineradores que trabalharam na construção de um túnel que os levava até o reator, pois teve uma ameaça de uma segunda explosão que caso ocorresse, faria com que a Europa na maior parte de seu território fosse totalmente dizimada. As doses mais baixas de radiação causaram efeitos tardios em quem as recebeu. Causa tumores malignos e deformações congênitas, sendo que as crianças foram as mais atingidas. Hoje, na região da Bielorússia, há pessoas que ainda estão em contato diariamente com a contaminação, e outras estão desabitadas, como a cidade fantasma de Pripyat e seus vilarejos, também conhecidos como aldeias. Na vila de Dronki, por exemplo, moravam seis mil habitantes que foram retirados à força. Nos locais onde estas pessoas vivem os radioisótopos ainda são ingeridos através de verduras, leite e carne. Os radioisótopos são amplamente distribuídos através da cadeia alimentar, ou seja, o vegetal absorve a substância radioativa do solo, e como servem também de alimento aos animais, a radiação propaga-se para a carne e o leite. Após o acidente de Chernobyl, o índice de câncer na tireoide entre crianças foi para 400 casos. Antes do acidente, a média era de 20 casos.

“Alguma coisa esverdeada estava grudada em nossas roupas e sapatos… Aquela cinza impregnou não somente a minha roupa, mas também penetrou no meu corpo, no meu sangue e no meu destino”

Os habitantes da região do acidente não sabiam a verdadeira proporção do acidente. A maioria continuou com suas rotinas normais, como se nada tivesse acontecido. O silêncio sobre o ocorrido era grande, e o desconforto era também, quando alguém tocava no assunto. Como em todo acidente de vasta escala, demorou, e muito, para que a população tivesse as informações sobre o que aconteceu, a verdade foi escondida junto aos escombros em brasa do reator da usina. Enquanto desconhecidos dos perigos da radiação, a população plantava flores naquela primavera, e após a chuva, as crianças que brincavam no jardim ficaram molhadas de chuva radioativa e impregnadas de cinzas. Na inocência, elas acharam que eram apenas polens. A situação poderia ter sido muito pior se tivesse ventado na noite do acidente.

“De manhã, a úmida neblina interceptava a luz do sol. Fomos à chácara com papai e preparamos a terra para a semeadura. Mais tarde o sol raiou e tomamos banho de sol com muita alegria. Tendo terminado o trabalho matutino, após o almoço toda a família foi de Moscovita para o bosque. No dia seguinte, fomos extrair suco das bétulas brancas da floresta em Sokolóvka. Fizemos a fogueira, assamos toicinhos e tomamos o suco. Assim passamos momentos felizes e alegres. Levamos o suco para casa e o distribuímos a amigos e vizinhos. Também guardamos um pouco no porão para ser tomado durante o verão. No dia primeiro de maio daquele ano – Dia do Trabalho – o tempo estava muito bom também. A praça ficou cheia de bandeiras vermelhas e o povo sorria alegre. Nós participamos do desfile e clamamos em frente do palanque “Hurrah”, glória ao comunismo da União Soviética. (…) Ninguém nos avisou sobre o perigo em colher os morangos e os cogumelos do bosque durante os 2 ou 3 anos. Nós tomamos o suco das bétulas brancas de Chernobyl, comemos morangos e cogumelos contendo césio, estrôncio e plutônio, tomamos banho de sol com o ar poluído de radiação e nadamos nos rios e lagoas contaminados.” (Victor Bisov, 15 anos, no relato “Hiroshima, Nagasaki, Chernobyl)

Os Likvidátori

Na “Zona dos 30 km” foi proibido o cultivo de cereais, ingerir água e criar animais. Os animais da região foram todos sacrificados. No livro, há um comovente relato sobre o sacrifício de cavalos e gado, que antes do acidente andavam livremente pela região das pradarias em torno da usina. O relato foi contado para a jovem Galina Poteenko pelo seu tio, que trabalhou como Likvidátori (Liquidador), termo dado aos 600 mil homens que trabalharam dentro da região contaminada. Foram eles que combateram os incêndios, realizaram tarefas de descontaminação e limpeza. Os que sobreviveram, são hoje inválidos, recebendo pensões do governo para arcar com os tratamentos médicos de doenças. Verdadeiros heróis, os que morreram são enterrados como cidadãos comuns, totalmente esquecidos, e a culpa nunca é do Chernobyl, mas sim de câncer. A maioria dos Likvidátoris possuía de 18 a 40 anos. Segundo estimativas de entidades que tratam das consequências do acidente de Chernobyl, 16 mil morreram e o restante luta contra a invalidez, causada por exposição à radiação beta e gama, que são aquelas de maior poder de irradiação no organismo. No relato “Histórias do tio Dmitri”, a jovem ginasiana Liudmila Láptsevitch conta sobre a vida dura e heroica daqueles que combateram os males de Chernobyl. Segundo o relato, os Liquidadores vieram de países como Rússia, Lituânia, Latóvia entre outros países da ex-U.R.S.S. Eles passavam dificuldades como o frio e fome. O governo distribuía carne enlatada para duas pessoas, o que não era suficiente, pois era uma lata de 328g para ser dividida entre duas pessoas. Para que sobrevivessem, eles se alimentavam das frutas e cereais contaminados. As roupas que utilizavam não eram suficientes para suportar o frio e as fogueiras eram proibidas, pois a radiação era espalhada. Depois de receberem relatos sobre a fome, o governo aumentou a alimentação fornecida, e as condições melhoraram. Os primeiros Liquidadores trabalharam desarmados, mas depois, com o aumento dos saques na região, eles começaram a andar armados. Havia ladrões que roubavam as hortaliças na tentativa de vendê-las nos mercados da Bielorússia, mas como as hortaliças estavam totalmente contaminadas com a radiação, as áreas de agricultura foram fortemente vigiadas, rodovias foram interditadas, árvores derrubadas para fabricação de estacas que foram utilizadas para pregar os arames farpados. Quando a prefeitura raramente autorizava alguns moradores de retirar bens das casas em que moravam antes da evacuação, os Liquidadores os ajudavam a carregar os pertences, sendo que muitos foram saqueados durante o período em que as equipes de Liquidadores eram insuficientes para a região. Apesar de a evacuação ter sido por questões de sobrevivência, muitas pessoas recusaram-se a sair. Era o caso de muitos idosos e por isso, os Liquidadores levavam pão a eles. Alguns foram encontrados mortos, dias depois. Morreram sozinhos, mas morreram ao menos em sua terra natal. Os Liquidadores também ajudavam a espalhar uma solução química que aglutinava a cinza radioativa que contaminava o solo. Com isso, diminuía-se a precipitação delas no ar, mas ainda assim, não diminuía a contaminação, apenas evitava que ela se espalhasse.

Os Liquidadores também eram responsáveis pelo sacrifício dos animais selvagens e domésticos, que se tornaram ameaça a eles. Gatos e cães abandonados pelas famílias que foram impedidas de levá-los tornaram-se uma ameaça. Cavalos, gado, ovelha, foram todos dizimados com tiros e lança-chamas. Abaixo, um trecho do relato, chamado “O dia em que os cavalos choraram”, da ginasiana Galina Poteenko. O relato dela foi baseado numa história que a jovem ouviu de um Liquidador.

“O meu serviço, bem como de meus companheiros, era o transporte de gado para ser morto. Carregávamos vacas e porcos, e assim que os deixávamos na beira do precipício, homens trajando uniforme do exército, que ali se encontravam, os fuzilavam imediatamente.
Na primeira noite, o grito triste dos animais e o barulho dos tiros das pistolas automáticas não saiam de meus ouvidos. Não conseguia pegar no sono. Nunca havia presenciado cena tão horrível.
Na manhã seguinte, recebi ordens para transportar cavalos. Creio que jamais poderei esquecer o que ocorreu naquele dia. Já viram alguma vez cavalos chorarem derramando lágrimas? É um acontecimento muito raro. Pois eles choravam. Choravam alto. Como se fossem crianças pequenas. Ao serem colocados na carroceria, eles deitavam suas cabeças sobre a cabine do motorista. Era como se quisessem firmar seus corpos. O choro miserável dos cavalos machucou meu coração. Eles seriam atirados no precipício ficando com os ossos estraçalhados. Fiquei imóvel, cobri o rosto com as duas mãos, e chorei em voz alta. Eu nunca havia chorado desta maneira. Os cavalos foram queimados com lança-chamas usados na guerra. Talvez isso amenizasse a dor desses animais, mas era um verdadeiro inferno.
Passei a beber como se estivesse me banhando. Durante as duas semanas de trabalho naquele lugar, os meus cabelos embranqueceram por completo, a ponto de nem minha mulher me reconhecer. Creio que não poderei esquecer, até minha morte, as cenas daquela grande matança. À noite, elas surgem em meus sonhos. O pesadelo continua”.

O Amor e a saudade da Terra Natal e parentes vítimas da radiação

Além de perdas de entes queridos, vitimados pela radiação, o acidente em Chernobyl também ceifou o lugar onde as pessoas cresceram, cultivaram lembranças. Um lugar onde as crianças brincavam e se sentiam seguras. Em todos os relatos do livro permeia a saudade da terra onde nunca mais puderam voltar. Sentem-se refugiados, mesmo durante os anos que se passaram. Falam das aldeias (vilarejos) que viviam e do sofrimento, principalmente dos idosos, que tiveram que abandonar suas terras. Recebiam cartas com relatos de como as aldeias foram destruídas e transformadas em meras colinas.

“O “enterro” da aldeia consistiu em usar uma escavadeira para fazer um buraco de cinco metros. Os bombeiros lançaram água do telhado à base de cada casa para não levantar o pó radioativo, e um monstruoso trator de esteira foi “varrendo” a aldeia para dentro do grande buraco. Não quisera ter visto essa coisa assustadora, bem diferente de um simples funeral. Quando penso no monte redondo de terra amarela que se formou ali, meu peito fica dolorido e minha garganta apertada.
Aquela aldeia transformou-se realmente numa aldeia fantasma, Dentro do silêncio triste, algumas casas ficaram em pé e cobertas de ervas daninhas. As janelas de algumas delas estão pregadas com tábuas em cruz e nas ruas não há ninguém – nem gente, nem cães, nem gatos -, apenas a vibração do chão onde estão sendo abertos os buracos do cemitério. Aldeia sem gente. Aldeia da morte.” ( Galina Róditch, no relato “Minha Mãe, eu e o amigo de Vovô”)

“Toda vez que eu vejo os gigantescos carvalhos centenários,
Que contemplo o riacho, ouço o seu burburinho,
O cantar das aves,
Receio que o meu coração vá saltar e subir ao céu.
Por não suportar tamanho esplendor temo perder a visão,
Não ouvir mais os sons e
Não conseguir mais apreciar
A beleza natural da minha terra natal.” ( Liudmila Tchúbtchik, 14 anos)

Apenas no dia dos mortos, as famílias podiam visitar seus entes, alguns deles enterrados em caixões de chumbo, para evitar que o solo fosse contaminado com a radiação. No cemitério de Mitsino, estão as lápides de 27 heróis que trabalharam no combate do incêndio no reator. Vasili Ignatenko, Vladimir Pravik, Nikolai Kibenok, Uladzimir Tsialiatnikau, Viktor Kibiánok, Uladzimir Tsichura, Mikalai Tsitsiánok, Leonid Tsialiatnikau são alguns dos heróis de Chernobyl, e a maioria deles e demais companheiros que estiveram na área de perigo morreram entre 2 a 30 dias depois da exposição. Vasili Ignatenko tinha 25 anos e era 1º tenente dos bombeiros. Ele subiu uma das escadas de setenta metros de alturas e ao pular sobre o telhado da sala de máquinas esteve de frente com a morte em forma de dose letal de radioatividade. Ele conseguiu livrar a sala das máquinas do incêndio, mas morreu no dia 13 de maio, vítima da Síndrome da Radiação Aguda. Deixou sua esposa Lyudmila grávida de uma menina. Quando ela foi visitar o marido que estava em seus últimos dias de vida, ela não pode abraçá-lo, nem beijá-lo, mas desobedeceu as ordens e mentiu para a enfermeira. Ela disse à enfermeira que já tinha filhos, pois se ela dissesse que estava grávida do primeiro filho de Vasili, a enfermeira não a deixaria entrar e somente veria um caixão pesado e lacrado de chumbo. O fato de estar grávida salvou a vida dela, pois parte da radiação passou para a criança em seu ventre, que morreu cinco dias após nascer. Hoje, Lyudmilla está inválida e tenta sobreviver da pensão que recebe.

O convívio com a doença e a espera da Morte

“Na avenida, ainda há sobras da neve do inverno que está terminando. Os meninos fizeram um boneco de neve, colocaram-no numa bandeja do hospital e o trouxeram para o nosso pavilhão.
O boneco de neve é lindo! Com certeza foi Tólik que o fez. Ele sempre quis ser escultor e por isso está sempre modelando peças com massa. Hoje, ele foi autorizado a se levantar também levantar o moral do ambiente. Afinal, começou a primavera.
Ao lado do boneco de neve foi colocada uma mensagem: Atenção meninas, essa é a última neve de vocês.
Por que última? Nós nos perguntávamos chorando.
O boneco de neve foi se derretendo pouco a pouco. Parece que se derreteu por causa de nossas lágrimas”. ( Trecho do diário de Nadzéica, no relato “O último boneco de neve”)

A edição brasileira chama-se “Bonecos de Neve e Chernobyl”. A escolha deste nome deu-se por causa do relato comovente de um dos jovens, Ígor Maroz, que conta a luta de sua prima, Nadzéika, contra o câncer. Aos quinze anos ela passou a sofrer de câncer, e então ela escrevia em seu diário. No relato, Igor diz que sua prima adorava a natureza, e tinha sonhos de ser pintora. Estudava no laboratório de artes. Os últimos dez dias de vida foram os mais tristes, e Igor nos traz trechos de seu diário. Nos trechos, ela diz que numa visita de seu avô ao hospital, ela lhe pediu que caso ela viesse a falecer, não gostaria de ser enterrada em um cemitério, mas sim numa planície ou bosque, ao lado de um pé de pera ou maçã. Tentou suportar a dor de todas as maneiras, faz pinturas e retratos para seu avô, chorou a morte do menino de sete anos do quarto 10. Um dia ela recebeu a visita de uma representante da Organização de Ajuda a Vida Humana da Dinamarca. Esta senhora havia perdido a única filha em um acidente de trânsito. Ela chorava e fazia carinho em Nadzéika, “a pureza do amor é sempre igual no mundo inteiro.” Na página referente ao dia nove de março, Nadzéica nos traz a tristeza de saber que o final está próximo:

“Acabou a fábula. Comecei a ficar ruim novamente. Nunca estive tão mal quanto agora. Já estou sem vontade de lutar contra a doença. As convulsões não param. O remédio não faz mais efeito. Tenho muito medo. Meus cabelos saem aos chumaços da minha cabeça.
Na consulta periódica, Dra Tatsiana me disse que o tratamento terminou. De agora em diante, tenho que recuperar minha saúde em casa. A médica olhou profundamente em meus olhos. Entendi e compreendi tudo.”

Ela morreu no final de março e sua última palavra deixada em seu diário foi a palavra em latim “VIXI”, que significa, em português, VIVI.

No relato “O destino da Bielorússia é o meu destino”, Volga Gantcharova, 16 anos, nos conta que seu pai, assim como outros Liquidadores, recebeu como “reconhecimento”, um certificado que dizia:

“Sargento Maior da Polícia – Alaksandr Miháilavitch
Cumpriu ordens na zona de 30 km.
Secretária do Interior de Khóinitsk.

Volga sofreu com a doença do pai, que veio a falecer dois anos depois do seu retorno ao lar, após trabalhar como Liquidador nas zonas radioativas. Com um tumor maligno na espinha dorsal, a família Gantcharova lutou até a exaustão para conseguir a cura do patriarca, que foi totalmente esquecido pelas autoridades da União Soviética. Segundo o relato, quando levaram o pai a um hospital de Moscou, após serem rejeitados em Minsk, um médico disse: “Porque vieram aqui? Não temos obrigação de tratar todas as pessoas da União Soviética”. Seu pai conseguiu tratamento nos Estados Unidos, mas depois de pouco tempo foi enviado novamente para Moscou para continuar o tratamento. Ele foi abandonado pela assistência médica e morreu no aniversário de 14 anos de Volga, data que nunca mais foi comemorada com alegria. Volga desde os catorze anos sente saudades de enfeitar a árvore de natal, enfeitar a mesa de aniversário. Segundo ela, no dia de seu aniversário de 14 anos, ela enfeitou o túmulo de seu pai, abrindo mão do aniversário. E deixou em seu relato uma pergunta que com certeza está até hoje entalada na garganta de vítimas do acidente, que recebem uma “Taxa de Caixão”, apelido dado ao pagamento oferecido pelo governo para as famílias que moram em zonas de risco:

“Onde estarão agora os responsáveis, líderes e respeitados cientistas que enfiaram milhões de pessoas no inferno da irradiação nuclear?”

Ler os 25 relatos de dor, sofrimento e indignação de jovens adolescentes que tiveram a infância e o auge da juventude destruída por um acidente até hoje perigoso, nos traz um olhar pouco explorado e esquecido sobre um “passado” que continua vivo e despedaçando vidas das pessoas que tanto amaram aquela terra devastada pelo erro humano. O reator 4 da usina de Chernobyl está coberto por um sarcófago e lá dentro, segundo os especialistas, material radioativo continua queimando. Será necessária a construção de mais um sarcófago, pois o que está lá já apresenta rachaduras e outros problemas decorrentes ao passar do tempo, mas a Rússia alega que não tem capital para tal, e os países ao redor também não se manifestam em ajudar.

As gravações e fotografias do local apresentam falhas decorrentes da radiação. Ainda hoje o entorno de Pripyat tem traços de radiação, crianças continuam nascendo com problemas decorrentes da irradiação dos pais afetados pela radiação. Ex-combatentes, que arriscaram suas vidas em pro da família e da pátria, lutam para sobreviver com o pouco dinheiro que recebem do governo. São considerados inválidos e são impedidos de trabalhar. Muitas pessoas sofrem de insônia e depressão, mesmo o acidente ser datado de 27 anos atrás. Não é apenas dor física, é também dor emocional. Muitas crianças da época ouviram, quando adultas, que não há mais nada o que se pode fazer para combater a doença. As crianças não podiam correr nos campos, colher flores, tomar sol ou banhar-se nos rios e lagoas em dias de calor. Passaram a infância vendo placas de proibições e trancadas em hospitais, vendo outras crianças e jovens morrerem. Os mais velhos acham que já viveram o suficiente, mas temem pela vida dos próximos da geração que está por vir. Em Chernobyl e arredores, a dor e a incerteza não é um fantasma, é uma consequência da radioatividade. Seria muito útil que todas as 100 redações das edições japonesa e russa fossem traduzidas para o português, e que houvesse mais edições desta obra que infelizmente está esquecida. Esta, entre outras obras que nos contam relatos de grandes tragédias são tão necessários para refletirmos sobre as grandes questões. Ler ficção é confortável, pois sabemos que as mentiras são mais confortáveis. A verdade dói, e cada relato deste horrível retrato das consequências de um acidente nuclear, nos traz a tona sobre o uso da energia nuclear. O quão seguro são as usinas Angra 1 e Angra 2? Devemos ou não deixar de lado a energia nuclear?

“Mesmo depois de anos, séculos
Esta dor não nos abandonará
É uma dor tão grande, tão infinita
Que não podemos nos afundar e esquecer
É uma herança da derrota.
Ficará por séculos acompanhando nossos descendentes
Permanecendo nos corações deles
E tirará a tranquilidade para sempre
Quero que cada um que vive sobre a Terra
Se lembre daquele ano, daquele dia terrível…” ( Maria Galúbovitch, 13 anos, no relato “Por favor, não apague a luz da vida”.)

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Übermensch Untermensch

“Como você e eu somos afortunados, num lar que é intemporal: nós que descemos das fragrantes montanhas de neve eterna agora para brincar com mistérios como o nascimento e a morte um dia (ou talvez ainda menos)” (E.E Cummings)

Deus é a criação humana. Homens são criação de Deus? Eu, você, nós. O que somos, quem somos? Quem te observa? O que pensa além, acima, fora, ao redor, de nós, pequenos seres à engolirmos grandes verdades, fartas mentiras? Eu olho meu hambúrguer pairando na bandeja, enquanto meu carro funerário está estacionado numa rua erma e distante para não assustar as pessoas do restaurante. Eu tirei meu terno. Visto calça social preta e camisa branca. Impecável, tal como o cadáver inerte e frio rodeado de flores num caixão feito de madeira nobre. Esse pobre humano descansa o sono dos justos, no meu carro preto adaptado. O velório será daqui 2 horas. Enquanto seus familiares se preparam para o luto, enquanto a esposa tira as vestes pretas do armário cheirando à naftalina e a filha de 2 anos pergunta “Papai já voltou da viagem? ”, eu estou num fastfood, do lado de fora, rodeado de prédios altos, com suas janelas com algumas luzes amarelas, outras brancas, outras penumbras, outras… sombras. Ahhh as sombras, quais são a minhas sombras? A sombra está ao meu lado esquerdo. De vez em quando eu escuto a gargalhada. A penumbra está ali, na rua erma que eu estacionei o carro, as minhas luzes eu carrego aqui, à minha direita. Às vezes elas falam comigo e quando isso acontece, a minha cabeça dói, meu peito aperta e acelera. Minha esposa perguntava se meus exames estavam em dia. Eu apenas respondia, “sim”. Um sim seco. Mas não era porque assim queria, mas porque as vozes gritam tão alto que eu mal entendo as simples palavras de minha filha pedindo um pedaço do pão com resto de carne de ontem que jazia em cima do fogão.

         A cada mordida gordurosa, cheia de nervos, tendões, carne vermelha, tomate, alface, bacon e molhos, eu penso na sordidez humana, na beleza, no amor, na raiva, nas intempéries, nos desafetos, nos afetos. Antônimos, sinônimos, frases e termos desconexos, mas que na minha cabeça talvez, faça algum sentido. Na minha vida de 20 anos recolhendo e tratando defuntos, muitas coisas eu vi e, ali, engolido por pequenas janelas de prédios imensos, sinto-me observado. Eu, ali, talvez super-homem, à olhos próximos, mas também um homem diminuto aos olhos das pessoinhas que habitam aquele prédio, e ainda mais diminuto ao universo como um todo. O que Deus pensa quando me olha, eu, pobre diabo, sentado mordendo um hambúrguer cheio de colesterol e triglicérides que podem estourar minhas artérias e veias, igual o homem que eu carrego no caixão na traseira do meu carro? Ele tinha uma enorme placa de ateroma na carótida, veias estouradas no cérebro. E se eu morresse agora? Eu estaria tranquilo? E as pessoas que eu amei, nessa vida? Aqui jaz um homem, que gozou, gritou, amou sorriu, um homem com punhos de ferro, que cheiram à formol e crisântemos, que tenta, talvez em vão, entender todo e qualquer sentimento.

           Na mesa da frente, um grupo de amigos ri. Eu tento entender a graça, enquanto eu me recordo que já recolhi um corpo de uma mulher que se jogou do décimo oitavo andar do prédio em frente. Eu recolhi um corpo em pedaços, a velocidade da queda versus o impacto do chão duro ao qual pés cansados passam todos os dias é exatamente igual os experimentos de física na escola, ao qual jogamos uma melancia contra o chão, de uma determinada altura e ela se espatifa inteira em polpa vermelha e em casca verde e branca. Um corpo que cai tem o peso enorme. São pedaços de ossos, vísceras, pele e sangue. Muitas vezes eu raspo os pedaços do chão com uma pá, e você, super-humano, assiste, tira foto e manda as fotos do cadáver em grupos do WhatsApp. É neste ponto, neste momento, que reduzimos a humanidade à pó. E talvez nem isso. Você, super-humano, compartilhando a desgraça, torna-se, eternamente responsável pela sua pequenez, pela sua mesquinharia. E torna-te, humano novamente, quando oferece um prato de comida e um copo d’agua, para aquele que agoniza de fome e sede, na entrada do teu prédio. E sobe as escadas, inconformado, rogando à Deus, ou questionando, “Onde está Deus, nessas horas”?

               Deus é a criação humana. É isso que eu penso quando recolho um mendigo que morreu de frio ou de inanição. Eles bebem pinga e conhaque de qualidade duvidosa, na sórdida tentativa de enganar a mente já tão cansada e entregue nos prazeres de não estar mais numa realidade. A realidade não pertence e talvez nunca pertenceu à essas pessoas. Ou a realidade existe e ela é deveras pesada demais para elas. Mas elas agradecem, com os dois pés juntos, o prato de comida, o copo de água, qualquer coisa que você ofereça. Nas noites frias, o cobertor fino não é suficiente. Nos dias frios de chuva, as cobertas se encharcam, eles tomam mais conhaque, mais pinga e então meu telefone toca para eu buscar e entregar no IML. Quando eu chego, eles estão endurecidos e frios. De vez em quando eu ajudo a quebrar os ossos, para poder ser enterrados. Isso quando a família é encontrada. Quando não, tornam-se números e vão para geladeira ao qual dezenas de cadáveres contorcidos, velhos e amarelados esperam a cova, muitas vezes rasa, o caixão de madeira compensada ou apenas um saco e panos brancos. Morrem sozinhos, e terminam sozinhos, com um número no chão. “Que Deus te abençoe! ”, eles sempre dizem isso, quando uma alma boa lhes estende a mão. Às vezes eu sou essa alma boa. Mas fico puto quando mijam e cagam na entrada do meu prédio. Mas depois, depois de muito pensar, depois de ver cadáveres de mendigos mortos ao lado de uma garrafa cheio de mijo e uma lata com fezes… sinto vontade de chorar. Mas aqui irmão… aqui não tem mais nada. Engulo o choro, sou homem. Homem não chora. Nem por dor, nem por amor, é o que diz aquela canção que às vezes toca na rádio.

           Estou terminando meu hambúrguer, pedi um chá gelado estranho na torpe tentativa de amenizar aquela mastigação nada saudável. Entre o som interno da comida que eu mastigo, vozes das pessoas nas cadeiras à minha frente, o barulho do mundo lá fora, carros passando e enquanto isso continuo observando as centenas de janelas dos edifícios ao meu redor. Ali, pessoas que amam, odeiam, se entristecem, choram de amor, de alegria, grávidas acariciam as barrigas, casais copulam, vidas nascendo, parindo, sangue, grito, agonia, prazeres, desprazeres. Cada janela uma história, e talvez aquela história, um dia se cruze com a minha, em vida ou na morte. Morte para quem? Espero que não seja a minha. Eu queria que ninguém morresse, mas se ninguém morrer, eu fico desempregado. Mas eu peço, para esse Deus que muitas vezes eu questiono a existência, que não traga a mim, a morte de quem eu amo. É um fardo muito grande, tocar num corpo nu e frio, é um fardo muito grande, recolher um corpo em pedaços num asfalto que parece o inferno de tão quente. É um fardo muito grande, buscar um corpo no hospital. É um fardo muito grande, buscar um corpo encontrado em casa, depois de muito tempo, apodrecendo, porque morreu sozinho e ninguém se importou. Acontece muito. Com velhos e acredite, jovens também. Mas penso que culpar Deus pela morte dos entes queridos, é como culpar o sol pelas sombras em meu rastro.

“Fria é a jornada pela noite. Há tantos caminhos para as estrelas, e cada um procura por uma mão, que lhe acalente. ”

             É isso que eu penso, quando eu vejo todas aquelas janelas, é nisso que eu penso, quando eu passeio com o rabecão, para levar ou buscar. No meu plantão noturno, contemplo as alegrias, contemplo as tristezas, contemplo o amor, e também a solidão. Qual a mão que acalenta a tua fé? Qual a mão que lhe acaricia, quando uma cascata de dor pesa em teus ombros? Em quem você pensa quando deita a cabeça no travesseiro e agradece? Em quem teus olhos deitam, perdidos e encantados, por encontrar um ser humano, tão fodido quanto tu, mas mesmo assim, cheio de mistérios e encantos? Aquela pessoa que lhe faz sorrir com os olhos. Sabe?

      Termino o hambúrguer, limpo os dedos gordurosos no guardanapo, começou a garoar. Sigo em direção ao meu carro, aquele imenso e temeroso papa-defuntos. Falta uma hora para o velório ao qual vou deixar o corpo que ali está. Uma súbita vontade de ir para casa me acometeu. Uma súbita vontade de me aninhar aos braços da mulher que tropeçou no meu caminho no meu pior momento, ao qual eu quase beijei o suicídio, abraçando garrafas e juntando pinos de pó. Aquela que apareceu quando eu não queria mais ninguém na minha vida. Estacionei o carro na frente do prédio. Novamente eu estava rodeado de janelas. Deixei um hambúrguer para o morador de rua que vivia lá de vez em quando. Ele dormia, mas esfregou os olhos e arregalou-os quando sentiu o cheiro invadir as narinas. “Obrigada Doutor! Que Deus lhe abençoe! ”. Eles me chamam de Doutor, mas sou apenas um cara que se veste bem por obrigação. Subi as escadas, abri a porta de casa. Minha filha dormia com o gato no colo e o cachorro aos pés, enquanto o desenho passava na TV. Ela tinha medo que o defunto fosse pegar ela de noite. Meu plantão é noturno, quando estou de folga, ela diz que não tem medo, porque papai conversa com eles, os defuntos, e os manda embora. Para ela, eu sou um super-homem. Irene me observa com o corpo apoiado na parede. “Acabou o plantão? ”, “Não”. Meu “não” seco, que se diluiu quando ela me abraçou com seu corpo cheirando à sabão. Sem perfume, sem creme. Apenas sabonete. “Não estou fedendo à defunto? ”, “Está”… ela ri, uma risada de deboche, ao qual na minha seriedade, eu, homem taciturno, sempre amei, porque é esse deboche que destrói toda minha carcaça. E ela me abraça, me leva para o quarto, segurando minhas mãos. Ela sabe que eu estou cansado, mas eu olho para ela com meu olhar de homem cansado, mas sedento por aquele corpo quente imperfeito que eu tanto amo. Ela envelheceu, já tem rugas de expressão naquele rosto, mas ela nunca perdeu a essência peculiar que eu tanto neguei que amava. Fiquei escondido, mas sempre por perto, mas abri mão do meu orgulho, do meu pessimismo, da minha crença, de que somos feitos para estarmos sozinhos, mas no fundo, eu sabia que eu procurava uma mão que me acalentasse. E aquela criaturinha brava, teimosa, carregada de defeitos e qualidades, aquele ser humano que me arrasta para cama e me ama toda vez como se fosse última, descortinou meus olhos. E onde tinha apenas escuridão, fez-se luz. Me faço de difícil, “Acabei de comer, daqui 40 minutos tem velório”, “Foda-se”. E ela me cala, com a boca, com as coxas, com os seios.  Um dia ela me disse, que tal com o Deus Eleguá, eu levava a morte na nuca e a vida na cara. E era isso, uma das coisas que ela amava em mim. Minhas dualidades, a minha dúvida, minhas histórias com os defuntos, meus ossos do ofício. Ela é a água, ela é o vinho, ela é o pão. Uma mulher perfeita, àquela que me sorri com os olhos, e que me encarou no meu momento mais obscuro. Ela é a minha tempestade, o sol que me queima a pele. Fiquei olhando para ela enquanto vestia minha camisa. “Está amassada, tem outra no armário”. Dei-lhe um beijo na testa. Ela riu. “Por quê você está rindo? ”, “Agora você está cheirando à defunto e sexo”. E ela riu. Como sempre ria, a rainha do deboche. Fui para o chuveiro, mas não fui sozinho. Após o banho, vesti minha roupa de “Doutor dos defuntos”, olhei no relógio e vi que estava atrasado. Sorte que eu morava perto do velório. Em 5 minutos estaria lá. Já tinha ligação perdida no celular, respondi que estava a caminho. Beijei a testa de minha mulher e da minha criança. A cachorra levantou o focinho e abanou o rabo. Voltou a dormir. Ela está idosa. Eu sei que em breve, eu vou enterrá-la, num cemitério de cães, pois ainda não tive condições de comprar uma casa no campo, que eu tanto quero. Ela me acompanha há quinze anos. Desci as escadas, saí do prédio, o mendigo me cumprimentou de novo, e se cobriu. Ele disse que guardou metade do hambúrguer para mais tarde, pois ele não sabia quando iria comer de novo. Pensei de novo: “Deus é a criação humana”. Mas aí minha cabeça doeu e eu lembrei de eventos na minha vida que me fazem esquecer as indagações de Friedrich Wilhelm Nietzsche…

             Cheguei no velório, fiz uma oração antes de sair do carro. Crianças brincavam na praça em frente, afinal, são crianças e ainda não possuem noção de finitude. Para elas, a mentira de “papai foi fazer uma longa viagem” cola até o momento que se questionam que a “viagem” está deveras longa. As crianças com mais idade começam a questionar quando veem o ente querido com olhos fechados rodeados de flores. E vão ver que olhos não se abrem mais. Familiares se aglomeram ao redor do carro. A viúva desaba ao chão, consolada por outras mulheres. Os homens se reúnem ao redor do caixão e o carregam. A cena irá se repetir quando finalmente o caixão alcançar a cova. Quando eu perguntar se querem dar o último adeus antes de eu fechar a tampa do ataúde, a viúva, a mãe e o pai do cadáver, vão cair em prantos novamente. Quando a viúva se acalma, ela acaricia o rosto do esposo, bem cuidado com base e fluido embalsamador. Ela vai se aproximar e dizer: muito obrigada. É sempre assim. Um trabalho bem feito, ainda que em momentos de tristeza, é reconhecido. Após uma noite inteira de velório, ao qual me ausentei alguns momentos para buscar outros defuntos e preparar a sala de embalsamamento, eu volto ao velório e finalizo. Corpo enterrado, próximo defunto encaminhado para companheiros de profissão do turno do dia. Deixo o carro de defuntos na garagem da funerária, troco as roupas e vou para casa, atravessando o centro da cidade, com os prédios e suas janelas cheias de histórias, cheia de vida e cheia de morte. Toda a vida fervilhante do centro da cidade, cheirando à mijo, com gentes gritando muambas, pedindo dinheiro, fazendo dinheiro. Gentes de carro, gentes no ponto de ônibus, gentes vendendo fé, gentes sorrindo, gentes de olhos baixos, gentes tentando a sorte. Gentes que aos olhos e palavras de Eduardo Galeano, são como pequenas fogueirinhas, sendo que algumas são tão intensas que nos queimam. Gentes sofridas, gentes fodidas, gentes sagradas. Gentes que carregam nos ombros, cadáveres antigos, de antigas ambições. Gentes, super-homens, super-mulheres, que nos erros se tornam sub-humanos, mas que se erguem, numa força que me faz, de fato, desacreditar que Deus é a criação humana.

Neste conto ninguém morre

“E fica na paz no meio dos seus trinta anos, movendo-se sem desgosto nem tropeço, entre os cadáveres pavorosos de antigas ambições, das formas repulsivas de sonhos que se foram gastando sob a pressão distraída e constante de tantos milhares de pés inevitáveis.” (“Bem vindo Bob – Juan Carlos Onetti”)

Vai começar de novo. Eu vou abrir os olhos, olhar para o teto, ver as luzes da manhã batendo no meu corpo estirado na cama. Levantar tem sido uma súplica. Viver tem sido uma súplica. O que me faz permanecer aqui? Os livros empilhados na mesa ao lado da cama, preciso estudar, mas preciso pagar os boletos, alguns atrasados. E parece que o mundo vai desabar. Sinto uma pressão no peito, parece que o telhado da casa velha e alugada vai despencar. Apenas em mim. Apenas o meu telhado desaba neste momento. Eu sinto meus orifícios respiratórios sendo sufocados pela ação indireta de tijolo, concreto e telhas. De longe, meu gato me observa. O quão patética eu sou agora. São sete e meia da manhã e minha respiração está ofegante. A cachorra lambe meus pés. Neste momento, volta a ficar tudo bem. Eu me arrasto até o banheiro, numa comiseração que dói. Olho no espelho: é por pouco tempo. Vai passar filha. Vai passar… Não sei quem fala isso pra mim, sou eu mesmo ou quem anda comigo e eu não enxergo?

Vai passar filha. Vai passar filha…

Todos os dias de manhã espero o ônibus passar. Espero as horas passarem, espero as pessoas passarem por mim. Espero o sinal abrir, espero os olhares pousarem em mim, espero… Espero o amor passar. E sorrir, com os olhos.

Olhos delineados, boca nude. Finjo um sorriso, mas por dentro é tristeza. No íntimo estou cantando Nick Cave, e murmuro:

Well a girl’s gotta make ends meet… Even down jubilee street

Chego na “clínica”. Organizo as coisas, acendo incenso, peço paz, peço calma, peço perdão.
Vai passar filha.
A voz de novo. O quase choro. De novo. Engulo o meu coração e tento amar por dentro.
Vai passar filha.
Canto um ponto. Faço uma prece, faço um poema, faço notas mentais. Não faço amor.
Faz tempo.
Por alguns momentos passa.
Cliente chega. Eu o vejo chegar através da janela de vidro da frente da recepção. Estaciona o carro importado na frente. Adesivo de família feliz no carro.
Eu o recepciono. Ficar na recepção, cuidar da planilha, atender telefone, responder mensagens no Whatsapp faz as horas passarem um pouco mais rápido. Mas eu também faço massagem, eu me apresento…
Olá, eu sou a Bee. Aceita uma água ou um café?
Aí o desgraçado me olha como uma presa indefesa.
E eu gostaria de dopar o filho da puta e cometer um homicídio qualificado. Hediondo.
E se eles me escolhem, os levo até o quarto, aguardo o filho da puta tomar banho, ele deita, eu faço massagem. Procuro fazer o meu melhor e eu torço, pra eles sentirem prazer em silêncio. Mas dificilmente é assim.
Começa a tortura…

Que corpo lindo você tem – eles sempre dizem isso

Obrigada! – mas na verdade eu penso: Por favor, cale a boca.

E eles não param de falar enquanto faço massagem.

Querem saber da minha vida, onde eu moro, qual o meu nome verdadeiro, qual a minha idade, quando comecei a fazer massagem. Tentam criar intimidade para perguntar o clichê de sempre:

Você não faz nada diferente?

Diferente do quê?

Bem, diferente… Sabe? Um agrado… um presente…

Não, só faço massagem.

Nenhuma finalização diferente?

Não, finalização só manual.

Nem pagando a mais?

Não. Aqui é uma clínica de massagens, não um prostíbulo.

Mas as outras garotas fazem. Porque você não?

Eu não sou todo mundo.

Eles riem. Na minha cara. Bem na minha cara de idiota.

Eles riem.

Eu dou risada também. Mas é por escárnio. Porque eu penso em como gastaria meu réu primário com um filho da puta desse. Eu poderia estripá-lo com uma faca, arrancando-lhe os intestinos, amontoando as tripas ao lado do corpo, enquanto o desgraçado agoniza perdendo litros de sangue num pequeno corte na carótida, ou na femural. Seria lindo, o filho da puta pregador da boa moral e bons costumes, com foto da filha e da esposa na foto do whatsapp, mas pagando massagem e tentando final feliz com a infeliz aqui. O melhor final feliz seria o pau e as bolas ensaguentadas do desgraçado na minha mão,  e eu ficaria sacudindo elas no alto, pra ele olhar bem, porque a presa agora não é mais eu:

O JOGO VIROU QUERIDINHO.

Enquanto ele me olha com olhinhos misericordiosos, enquanto me chama de puta desgraçada sem eu ser uma puta, o sangue tinge a sala zen com imagens de buda e cheiro de incenso de sândalo e dama da noite. Mais alguns minutos e o sangue começa a oxidar. Um cheiro de ferrugem com incenso barato toma conta da sala.

Você não queria um final feliz? O final feliz, o oral que ele tanto pediu aconteceu! Eu faria o desgraçado engolir o próprio pau. A perícia ia encontrar o infeliz num mar de sangue, com o próprio pau na boca, com as tripas ao lado do corpo. Iria virar aquelas histórias tragicômicas que os policiais contam nos corredores da delegacia:

Nossa, esse caso foi muito legal. Homicídio numa clínica de massagem!

E o policial contador do caso vai fazer o sinal de aspas quando falar “clínica”. Os outros policiais vão rir. Eles entenderão a “referência”. Até porque policiais adoram tirar o stress do dia a dia nessas “clínicas”. Aí o policial prepara todo o clima para soltar essa:

A puta não quis fazer final feliz, cliente disse desaforo, a puta ficou “puta” de verdade e matou o cara.

kkkkkkkkk a puta ficou puta…

E todos darão risada.

E a puta que ficou puta? Pegaram ela?

Sim, a puta se entregou.

Sim, EU me entreguei.

Esperei na sala, sentada no sofá chique vermelho, pernas cruzadas, balançando um copo de uísque sem gelo, brindando a minha desgraça, numa tranquilidade que dói.

Mas isso é só imaginação. Continuo massageando o cara pelado no tatame que não cansa de me elogiar na tentativa de ter final feliz.

Mas eu só quero sair dali. Termino massageando o pau e o períneo do infeliz, que treme e geme, enquanto eu penso o quanto ele gritaria de dor se eu arrancasse aquele pau com uma faca em forma de gancho. Eu poderia esconder a faca embaixo do tatame. Mas não… ao final, eles gozam, botam um sorriso na cara…

E no final eles me agradecem… Eles gozam, eles tremem, eles gemem, e a cada “obrigado”, eles roubam um pedaço da minha alma.

Ahhhh se me esposa soubesse fazer isso… Ahhh, se você fosse minha namorada, eu casava.

Mentira. Pra vocês, eu sou uma puta. Uma mulher pra não ser apresentada pra família, uma mulher pra não sair de mãos dadas na rua. Afinal, não sou massagista, sou puta.

O que vocês querem é uma dama na sociedade e uma puta na cama. Não uma puta na sociedade e uma puta na cama.

Irônico né?

Enquanto o cara está no banho relaxando com a gozada, eu conto quantos cretinos possíveis cadáveres eu preciso massagear na semana para poder pagar meu aluguel. Quantos sorrisos falsos eu preciso distribuir para tentar seduzi-los? Será que eu vou conseguir seduzir alguém de novo querendo seduzir de verdade, com olhos, coração, corpo e espírito? Engulo meu coração, engulo o choro e tento me amar por dentro.

No intervalo, mando currículos. Pra voltar a ser “normal”. Uma dama na sociedade.

Preciso sair dessa para não enlouquecer.

Aluguel atrasado. Boleto da faculdade atrasado. Contas atrasadas, nome no Serasa.

De repente tudo desabou. Demissão, eu sem chão. Mercado competitivo, perder tudo ou continuar?

Eu já transpareço que estar ali é um suplício. Estar ali é quase uma tortura. Fico três dias sem conseguir atender cliente. Meu sorriso falso na cara já me entrega. As contas se atrasando, a vergonha tomando conta. é por tempo curto. Voltarei a ser uma “mulher normal”, e não uma massagista, uma personagem.

Vai passar filha. Vai passar… Tudo na vida é aprendizado.

Essa é a voz que eu ouço quando engulo o choro.

Cada cliente, cada toque, é um pedaço da minha alma que se quebra, em milhões de pedaços. Eu carrego os cacos e tento de novo. Na falsa paz dos meus trinta anos, sigo tropeçando, construindo de novo e de novo um vitral que se partiu em pedaços.

Vai passar filha. Vai passar. Uma oração, um prece, um ponto, um poema mental, uma canção.

Eu sei, vai passar. Arrumarei um emprego num escritório novamente, mas, futuramente, ainda carregarei nas costas, os cadáveres pavorosos de cada homem que massageei em troca de dinheiro. Meus cadáveres pavorosos, a pisarem no meu corpo, com os pés secos, pesados, a pressão constante, dezenas de pés me pisoteando como um animal hediondo.

Cada homem uma nova possibilidade de cometer meu primeiro crime. Já pensei em vários. Cada dia que passa, saio ilesa.

Todo dia uma oportunidade de perder o réu primário.

Você é muito linda

Obrigada

Você ainda vai transar comigo.

Não, não vou.

Passa uns minutos e o desgraçado desaba, dopado por mim, silenciosamente. E eu mato o filho da mãe com requintes de crueldade. Fico ao lado do corpo peludo do velho industriário nojento que insistia pra eu transar com ele. Ele morreu com os olhos bem abertos, espumando sangue porque ele ainda estava respirando quando eu cortei a garganta dele. Depois de morto eu ainda continuo olhando para os olhos dele e eu não sinto dó nenhuma. Olhos esbugalhados, implorando, suplicando pela vida. E eu ali, sem emoção, sem dó, sem piedade. Quando eu entro ali, eu deixo de lado todo o sentimento que eu ainda tenho. Ali eu sou apenas um corpo vazio que toca outros corpos em troca de dinheiro. Ali eu sou apenas um objeto. Vazio e gelado.

Mas o velho peludo e rico ainda está vivo. Falando sem parar, elogiando o meu corpo e pedindo coisas nojentas. Eu o matei em pensamento. E ele goza feito um porco. Eu tiro minhas luvas com nojo. Me recuso a fazer massagem íntima nesses desgraçados sem luva.

Mas você não faz programa? Pô nem um beijinho? Nem um agrado?

Meu agrado seria um golpe com a estátua de buda bem nas têmporas. Nessas clínicas eles colocam a imagem de buda para quebrar a estigma de “massacanagem”. As massagistas são terapeutas. Eu sou uma ótima terapeuta assassina e sádica. Vontade de matar, cada um deles, e contemplar a vingança ouvindo música brega relaxante, enquanto espero a polícia chegar.

Ninguém morre.

Ninguém morreu.

Ninguém morrerá.

Eu não mato.

Neste conto não morre ninguém.

Eu que morro, aos poucos.

Sabe? São os cadáveres pavorosos, que me matam aos poucos. Os cadáveres que eu gostaria de ter criado, dia após dia, toque após toque, gozo após gozo, elogio após elogio.

Minha cabeça dói. Meus ouvidos estão surdos, porque eu coloco a música no fone de ouvido em altos decibéis. Apenas para calar meus gritos. Faz 1 semana que pingo Cerumin no ouvido. E não passa. E eu sei a razão. Só vai passar quando eu acordar desse pesadelo. Da janela do ônibus eu tento silenciar meus gritos. Mas mesmo assim, eles estão me deixando surda. Mas tenho fé, que os cadáveres pavorosos dos homens que não matei, serão apenas alguns fantasmas vivos, andando na rua, com seus carros importados, com suas esposas dondocas e filhos mimados.

Vai passar filha.

Vai passar…

A cada dia quero gastar meu réu primário.

Crime hediondo.

Vai passar filha… Vai passar.

E eu rezo pra São Jorge

Vai passar filha…

E eu rezo para os anjos

Vai passar filha.

E eu atravesso a rua, de noite, voltando pra casa, carregando meus falsos fantasmas.

Mas…

Vai passar filha.

Todos os dias ergo minhas mãos aos céus.

Vai passar filha.

Deito meu corpo cansado, depois de um banho demorado, com a tentativa torpe de ter um abraço acolhedor ainda que seja apenas o meu próprio abraço, em pé, mas encolhida como um feto, mesmo que em metáfora. Seco-me, sento na beirada da cama. A cachorra lambe meus pés e pede carinho. O cansaço vem, eu me deito. Faço minha oração.

Seguro forte em minhas guias. E eu escuto:

Vai passar filha.

E adormeço.

E amanhã, serão apenas cadáveres.

Pavorosos.

Hediondos

Me pisoteando.

Inevitáveis.

Mas…

Vai passar filha.

Chen Yifei 11

Pintura de Chen Yifei, artista chinês.

 

Misofonia

Alessandra era linda. Compreensiva, dona de um rosto e corpo de medidas perfeitas. Além de tudo, era extremamente inteligente. Mas Alessandra tinha um problema. Ela comia de boca aberta, fazia barulho para sorver sopa e demais líquidos quentes e isso era o que eu mais odiava na vida. Meu pesadelo era levá-la ao cinema ou ao parque, pois ela comia pipoca, amendoim ou chips de uma maneira absurdamente irritantes. Mas não pense, meus caros, que isso sempre foi assim. A viborazinha me enganou!

Eu sempre saí para comer sozinho. Até mesmo em confraternizações em família, eu fazia apenas a social. Quando começavam a fartar os pratos de comida, eu me retirava para o meu quarto, longe de todo tipo de barulho que envolvesse bocas mastigando. Eu só me alimento usando fone de ouvido, pois o barulho de minha própria boca mastigando também me irrita. Passei por 4 psicólogas. Nenhuma resolveu o meu problema. Aprendi, à meu modo, a lidar com o meu próprio fardo.

Quando eu saía com alguma garota, eu convidava para jantar ou ir ao cinema. Se fizesse barulho para comer, eu dispensava. Dava um belo de um “perdido”, como diz meu sobrinho de 18 anos. Flertar e testar mastigações femininas e um era exercício de alta tortura, mas chegou uma hora ao qual eu cansei de me masturbar no banheiro vendo vídeos pornôs no celular. Pornô no mudo. Barulho de sexo oral também me irritava, afinal eram bocas quase engolindo outras coisas. Quando eu fazia sexo, era sempre com som alto. Usar fone de ouvido poderia ser ofensivo. Eu sou, acima de tudo, um gentleman.

Bom, eu estava falando da Alessandra. Ahhh a Alessandra, essa dissimulada ao qual eu me casei. Na minha concepção, uma verdadeira dama jamais faz barulho para comer. E nada de amendoim (em pasta pode, desde que puro, sem torradas, pois fazem “crec”), batatas chips, mandiopã, massa folheada entre outros… Poderia ser a mulher mais linda, meu coração se partia em pedaços. Mas Alessandra… Ahhh!!! A vadia era mestra. Ela soube disfarçar. Revelou sua verdadeira deglutinação após 1 ano de casamento!

Mas eu resolvi… Afinal, eu amo muito Alessandra.

Um belo dia, inventei que eu teria de trabalhar até mais tarde. Comprei capuz, máscara, luvas e um revólver de brinquedo. Invadi minha própria casa, simulei um assalto. No primeiro grito de desespero, eu a ataquei, Quebrei-lhe o maxilar e abri um ângulo de 90 graus esgarçando-lhe os maxilares daquele rostinho tão lindo. Hoje ela se alimenta via sonda e eu sempre seguro suas mãozinhas bem-feitas e delicadas enquanto uma mistura pastosa e bege entra pelas narinas.

Um dia normal

“Sobre aquilo que nada pode ser dito, devemos manter o silêncio.” (Wittgenstein)

Acordei cedo. Fiz o café, esfreguei a cara amassada, analisei meu rosto enrugado e cansado no espelho do banheiro. Olhei para a cama que refletia no espalho ao fundo, Lilly estava estirada na cama com seu pijama velho e furado. O gato lambia as patinhas freneticamente, numa perfeição meticulosa que doía. Entre uma lambida e outra, o gato me encarava: provavelmente ele estava me julgando. Abri o registro do chuveiro, esperei uma coluna de vapor tomar conta do banheiro. Tomei um banho escaldante, como se eu estivesse sentindo a pele caindo ao chão em pedaços. Lilly deixou a camisa e a calça impecavelmente  passada e pendurada no cabideiro. Eu amo o perfeccionismo dela, e ela ama o meu silêncio e ausências. No fundo, ela sabe que eu sou o homem que na ausência foi o mais presente na vida dela. Depois da roupa vestida, barba asseada, peguei as chaves do carro, coloquei um sorriso falso de gratidão na cara e segui em direção ao trabalho.

Cheguei ao escritório, cumprimentei à todos. Talvez, por mera educação. Meu pai sempre me ensinou que por mais vontade que temos de socar a cara de certos indivíduos, a cordialidade sempre tem de vir acima do rancor. Depois de alguns tapinhas hipócritas nas costas, sentei em minha grande mesa e fiz um check-in nos e-mails importantes. Depois, visualizei algumas mensagens nos grupos de Whatsapp. Filtrei apenas aquilo que me interessava. Meu chefe pediu a última projeção. Atualizei os dados, refiz alguns cálculos, relatório salvo e entregue, ao qual minutos depois pula uma mensagem de notificação: “Ótimo”. Depois, ele me avisou que eu iria acompanhá-lo no chão de fábrica para verificar de perto se a projeção será alcançada. 5000 travesseiros teriam de estar prontos e na expedição até às 17h00. Eu respondi: “OK”, seguido de um emoticon “joinha” ao qual eu odeio com todas as minhas forças. Na minha mesa, estava sorrindo, mas por dentro eu estava com ódio. Mas meu pai sempre dizia: é preciso ser gentil, sempre.

Quando bate 09h30 no relógio, religiosamente eu tomo meu sagrado café com 4 gotas de adoçante e um pão com manteiga. Tomo na varanda da cafeteria da firma, que fica de frente para uma garagem. A empresa fica perto da rodovia. Da varanda eu consigo ver os carros, caminhões, motos e ônibus correndo na rodovia, nos dois sentidos. Do outro lado da rodovia, dá pra ver um muro cinza, pichado com letras estranhas. “É um grafite”, disse uma amiga minha, quando eu tentei entender o que estava escrito ali. Ela também não entendia, mas ela respondia sempre: “é um grafite, é arte”. Atrás do muro, há uma árvore com poucas folhas. Acredito que a árvore está morrendo, ou que já esteja morta há tempos, com folhas secas que teimam em não cair. No meio disso tudo, fios emaranhados, postes e pássaros. Nada de novo, mas eu sempre me sento de frente para a rodovia e o muro, analisando as mesmas coisas. Rotina, sempre a tenha se não queres enlouquecer.

Um carro preto luxuoso, 4 portas, vidros escuros parou no meio fio da calçada do muro.Estacionou. Ficou um tempo parado. O motorista provavelmente deveria estar olhando algo no celular. A emergência de responder algo na hora nos enlouqueceu. Diante de tanta aproximação, ficamos cada vez mais distantes. Tudo é virtual, tudo é falso, beijos e palavras vazias. O motorista saiu do carro, aparentemente estava nervoso. Do lado do passageiro saiu uma mulher loira muito bonita. Os dois, ainda que na distância, aparentavam ser muito bonitos e imponentes. Mas isso não importa, o que importava naquele momento, eram os meus goles de café e a cena toda. A Mulher gesticulava, levava as mãos em prantos ao rosto. O Homem gesticulava, meio que implorava, quase querendo se ajoelhar. Só estava eu na varanda da cafeteria, e hoje eu fiquei mais tempo que o normal. Aquela cena me intrigou, só existia aquela paisagem ali, aquela rua paralela ao muro e a rodovia com motoristas concentrados demais mais para ver a discussão que estava ficando cada vez mais intensa. A Mulher foi se exaltando, encostou no muro, continuou gesticulando, numa cena digna de pena. O Homem estava próximo do carro, apoiava a cabeça nas mãos, em cima do capô do carro. De repente ouço três barulhos seguidos, que quase foram abafados pelo barulho dos carros na pista. O Homem entrou no carro e saiu na calmaria. Olhei para o muro. Algumas letras do grafite estavam escarlate. Tinha uma mancha vermelha bem no cinza. Sangue quente, pedaços de massa encefálica explodidas no muro. Eu estava longe, mas tenho certeza que era uma sujeira igual era nos filmes de assassinatos. Três tiros na cabeça. O carro preto estava descendo a rua, passando por baixo da ponte ao qual passa a rodovia. Ele passou ao lado da firma, o vidro do carro estava aberto, eu estava ainda na varanda, meio petrificado, meio extasiado. Ele, o assassino, olhou pra mim, eu olhei pra ele. Ele sorriu, eu também. Agora eu e aquele homem temos um segredo. Eu não anotei a placa. Tudo tem um motivo, uma razão. Terminei meu café. Levei o prato e a xícara para a garçonete, que ela loira igual a mulher executada. Agradeci: “Tenha um bom dia!”. Seja cordial. SEMPRE. Seja gentil. SEMPRE. Guarde seus segredos e silêncios. SEMPRE.

Três tiros. SEMPRE. Que é pra garantir. Foi isso que eu aprendi hoje.

Stains on the memory

Não se discute. O silêncio perante uma série de discussões sem razão na noite de domingo, enquanto a televisão vomitava seu lixo indigesto. Fui picando uma folha de papel abandonada na escrivaninha da sala. Enquanto as pessoas riam das desgraças alheias e alguns tinham sorrisos incontidos dentro das calças. Cada pedaço de folha branca rasgado às mínguas, papéis sem importância, despedaçados. Sinto o vinho dilacerar a alma como se quisesse me cortar em pedaços. Minutos antes, eu ouvia o tilintar de copos, garfos, facas, bocas se mexendo, comida sendo mastigada. Mais um pouco de percepção, eu poderia ouvir a comida caindo no estômago e o barulho do ácido gástrico queimando o pedaço de carne ao molho madeira sendo destruído. E as bactérias dos intestinos alheios fazendo festa. Era só mais um pouco para escutar a festa torpe de todos os humores da sala e os mesquinhos pensamentos de uma vida vazia e sem pretensões. Era só mais um copo de vinho, para adormecer com a cara na mesa, e em sonhos desconexos eu ver os rostos das pessoas que eu mais amei, misturando-se em desenhos e manchas de paredes. Eu acordei, com uma cara embasbacada, amassada, assustada com os olhares alheios de quem disse que eu falava sozinho. O jornal noturno passando na televisão, a desgraça do acidente de caminhão com engavetamento, “Morreram todos, que desgraça, que desastre”, “Morreram todos”, “O motorista estava bêbado”… E aqueles olhares perdidos, balbuciando que eu perdi a programação de domingo, como se eu realmente me importasse com aquilo tudo. E a garrafa de vinho quase vazia com seu conteúdo vermelho me ditando as desgraças e os sentimentos desentendidos do mundo. No dever de esvazia-la, lanço meu copo a toda sorte de calor e bem aventurança, a toda sorte de acordar no dia seguinte com a ressaca me questionando os porquês, com aquela dor de cabeça gritando aos quatro ventos, e os olhares de reprovação, com o zíper da calça aberto, com os botões da camisa aberto, toda em desalinho.  A barba por fazer, “como um irresponsável”, diz a minha falecida avó. A empregada perguntando se eu quero um copo de café, e eu apenas querendo fazer uma pequena festa entre o meio das pernas dela. O café quente e forte… Posso sentir o cheiro de sabonete exalando do pedaço de pele me servindo, mas eu gosto mais do cheiro do final do dia, aquele suor, misturado com o desespero de querer voltar para casa. Eu poderia espiar a sua nudez no banheiro, ao tirar as roupas velhas de trabalho, mas minha cabeça dói demais, e a cada gole de café eu me lembro daqueles tempos de menino, em que as meninas impúberes iam para escola e em suas camisetinhas brancas eu via a ponta dura dos mamilos ainda em formação. Apenas menininhas, menininhas em hormônios a festejar, me olhavam com desejo, eu sei, mas a garota Suzy… Ahhh Suzy! A única que me deixou ir além. Eu me recordo ainda hoje, aquele beijo molhado e desajeitado, aos meus treze anos, encostado na mureta, longe de olhares. Atrevi-me, e senti aqueles peitos macios escondidos por trás de um sutiã de algodão, e aquela pressão, aquela coisa, o desespero de achar o local certo ao colocar meu tímido e desajeitado pau no meio daquelas roliças pernas de Suzy. A empregada aparece de novo, fazendo contato, o braço dela perto do meu, e sem perguntar se eu desejava mais café, encheu minha xícara, e aqueles braços, aquele perfume. Um dia me apaixonei pelos braços da vizinha. Estava na soleira da porta de casa, numa mágoa adolescente, vi aquela senhora balzaquiana chegando com sacolas pesadas. Pude ver todos aqueles tendões e veias saltadas. Ofereci ajuda, carreguei algumas sacolas. Ganhei biscoitos e chocolate quente. Ela me falava da vida, enquanto amassava a massa do pão. Aquela penugem rala dos pelos, embranquecida com a farinha, e o movimento sublime dela lavando os braços, embaixo da água fria da pia da cozinha, e aquele olhar de que sabia que eu a desejava, mas eu queria apenas amar aqueles braços, aqueles tendões, aquela brancura, a extensão para as mãos cujos dedos finos ela lambia para experimentar a massa de bolos que ela achava que me agradava. E ela achava, ela achava que eu frequentava a casa dela por causa de biscoitos e doces. Eu era apenas um adolescente inocente, apaixonado pelos braços. O tempo passou, os amores vieram, e também se foram, e hoje, eu sou apenas um homem em devaneios de ressaca aquecendo a garganta e a alma com café amargo. A empregada me dá um sorriso, faço-me por desentendido, pego mais café e sento no sofá da sala. E fico ali, olhando para o teto pintado de um verde ridículo. Queria estar louco o suficiente para ver aquelas manchas dançando na parede, aquele mofo formando imagens desconexas, e minha mente voando em um turbilhão de luxúria, corpos ensandecidos como vermes, se misturando, tocando-se, em delírio de gemidos, dor e inconsciência. Mamãe me disse que eu era um doente sacana. Eu sou apenas um homem, que vivia constantemente em uma ressaca quase cigana, de bar em bar, após o trabalho, afogando minhas mágoas e desdém do mundo rançoso. As corporações. Eu poderia escrever um poema sujo e deslavado sobre elas. As pessoas, tão mesquinhas, falsas, a diretoria que nada sabe, as pessoas puxa-saco, lambe-saco, chupa-rolas. É como um prazer desnorteado, insano. Queria dar um tiro de fuzil em cada uma delas. Toda aquela frescura, aquela imundície. E o salário de merda todo final do mês, que minha mãe dizia “Ahhh o dinheiro abençoado”, só se for abençoada pela total falta de amor, todo o ódio dos sorrisinhos alheios das minhas companheiras de trabalho, toda falta de amor, mas excesso de tesão daquela recepcionista que me pedia aos gritos para que eu a levasse  ao delírio. Ela tinha uma bela bunda, peitos macios, mas uma boca que exalava esgoto. Eu a amava, desde que ela fosse como um vinho. Eu a amava, mantendo-a na horizontal, com a boca ocupada. Não é machismo meu caro amigo… Certas mulheres devem ser mantidas na horizontal, com uma rolha na boca, tal como o vinho, entende? Ouço seus pensamentos agora, exclamando “Machista de merda, desgraçado”. Pouco me importo, a sinceridade incomoda, o Amor incomoda.  O amor anda junto com o fracasso. Sentado nesta sala, vejo a empregada limpando o armário. Dá pra ver as marcas da calcinha cavada. Ela me solta outro sorriso sacana. Eu poderia amar essa mulher, essa mulher pode sentir algo por mim, ou apenas achar que eu posso dar-lhe uma boa vida. Estou suando… Suando como um porco, está calor lá fora, ela me diz… E olha para minha camisa suada. Diz que Dona Alzira, minha mãe, saiu. E as manchas na parede parecem estar sorrindo agora, e aquela calcinha cavada também me faz um sorriso. Ela está começando a ter aquele cheiro que eu gosto tanto. Eu poderia consumar o ato no sofá da sala. Tranco-me no quarto, e coloco-me a fitar os lençóis brancos chacoalharem no varal. Aquilo me acalma, por alguns momentos. Aquele desespero sufocante, me atiçando, crescendo e inflando minhas calças, e aqueles braços, o cheiro de café e sabonete, as roupas, os lençóis, a brisa plena da manhã das dez horas, o latido do cachorro, o olhar de desaprovação do gato no galho de árvore. Livre-me, livra-me ó Deus tolo… Dos pecados que me atormentam a alma. Livra-me da vontade de fazer cócegas e desejos molhados na pele daquela mulher. Livra-me de minha mãe dizendo que eu sou um vadio. Eu poderia desertar, me divertir em braços de prostitutas com gonorreia, o amor sufocado e contagioso que eu tanto preciso. Copos de conhaque,cigarros paraguaios, apostas que nunca findam, o dinheiro sujo me dando o poder que eu, um tolo, vulgar e sedento, tanto preciso. Ao final da noite e ao amanhecer satisfaço minhas vontades em uma mulher que eu não sei ou não me recordo o nome. Darei um beijo naqueles ombros, e a mandarei queimar no inferno. Encontro-lhe mais tarde, meu pedaço de prazer, acariciando suavemente teu íntimo, queimando em labaredas a lhe dizer um milhão de sacanagens ao pé da orelha. E eu vejo todas elas, as mulheres que eu amei, e as que eu fingi que amei, indo embora, com um sorriso no rosto, achando que eu realmente voltaria… Eu era… Minha amada, EU sou apenas um garotinho perdido, na soleira da minha porta, em sonhos, em devaneios, aquela falta de sorte regada com o desespero de ter beijos sórdidos todas as noites, de tomar um café ou tomar um vinho sem pensar no meu próprio desespero. Vou deitar nesta cama, cobrir-me com estes lençóis brancos, deitarei nu, com meu sexo totalmente ereto e livre de pudor, deixarei que a brisa noturna me leve todos os meus medos e desencantos. Abra a porta e me veja, contemplando o vazio, como se todas as estrelas do céu viessem me saudar. A velha garrafa jogada ao pé da cama. Entre conhaque, vinho e cigarros, sou apenas um garoto perfeito, uma explosão de vozes e loucura que nunca acaba. Sou apenas uma carícia infindável, aquela carícia que lhe deixa marcas. Eu sou apenas um homem minha querida, carregado nos ombros do pai e da mãe, carregado de sonhos de ir e vir.

 

(TEXTO ESCRITO EM 2013)

 

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A crônica de corpos – O Bicho Humano

Capítulo I

“O bicho humano, fodido, mas sagrado” – Eduardo Galeano

Cinco horas da manhã. Estou estirado na cama depois de uma noite estranha com um misto de frio e calor. Sabe? A noite bipolar? Aquela que primeiro te esquenta, depois te congela. Por hora, me cubro até a cabeça com meu cobertor, outra, estou quase nu, apenas com os pés cobertos. O gato, Fred, dorme ao meu lado abrindo e fechando os olhos amarelos a cada movimento que eu faço. Apenas eu e Fred. Irene me abandonou, por causa de minhas neuras infindáveis. Ao lado da cama, ficou um abismo escuro e fundo, um espaço incompreendido lotado de saudade e cheiro de jasmim. O perfume de jasmim que eu sempre presenteei Irene repousa na cabeceira da cama, precisamente ao lado esquerdo. Todos os dias, antes de dormir, eu borrifo três vezes nos lençóis e no travesseiro. Eu sei. Isso é patético. Não existe nada mais patético do que um homem com saudades. Devaneios à parte, fico deitado olhando para o teto, o ventilador está girando espalhando bafo quente de homem suado e pelos de gato. Fred saiu do meu lado, foi em direção à porta da varanda, do meu apartamento pequeno, porém confortável, arrumado numa perfeição que dói.

Fred está parado, olhando fixamente para a varanda por trás da porta de correr de vidro. Ele está com olhinhos afoitos. Olha pra mim, miando pede para sair. Chega na beirada da cama, se estica e esfrega a cabeça no meu braço estirado…

O que tem ali Fred? Quer que eu abra a porta né?

Estou tentando lidar com minhas centenas de neuroses. Nada nem ninguém vai entrar pela varanda do décimo quinto andar. Eu sempre acho que um dia meu algoz entrará pela varanda e me matará enquanto eu durmo, colocando as mãos funestas no meu pescoço depois de envenenar meu gato com bolas de peixe recheadas com chumbinho. Vou ser estrangulo de forma rápida e silenciosa, sem nem ao menos dar tempo de eu pegar minha Magnum automática na cabeceira da cama e mandar o meu pretensioso assassino ou assassina para os quintos dos infernos. Minha visão vai escurecer aos poucos enquanto meu pescoço é apertado, verei borrões, amaldiçoarei minha vida e as pessoas que eu amei. Enquanto isso, os órgãos de Fred vão ser liquefeitos com a ação do veneno. Após me matarem, tenho certeza que irei direto para o inferno. Será? Será? Será?

Será que o inferno existe mesmo, será que o Inferno é esse mundo que vivemos agora, eu, você… Uma punição de Deus sabe quem… Deus, Deus… Deaux… Olho para o lado, o gato continua ensandecido, agora arranhando as patinhas no vidro da porta. Sento na beirada da cama, esfrego a cara, os olhos, bocejo, dou uma coçada nas bolas e observo Fred novamente…

“Fred… O que tem aí Fred? Não existem ratos aqui!”

O último, Irene matou com uma vassourada. Era do vizinho, que tinha um criação de ratos e eles proliferaram pelo condomínio. Irene foi tremendo, feito vara verde, matou o rato. Paaaaaaaaa… o rato agonizando e aqueles olhinhos de misericórdia. Ela ficou chorosa a semana toda por causa de um mísero rato. Eu matei vários no biotério da faculdade. Era bom aquele tempo. Os cadáveres eram apenas corpos destinados à estudos, coelhos e ratos.

Cheguei perto da varanda, acendi a luz. Era um pássaro, um pássaro agonizando, batendo as asas, cada vez de forma mais lenta. Passei cinco minutos observando a cena, até que o bater das asas cessou. A primeira Morte. O primeiro cadáver do dia.

“Nada de novo Fred! Nada de novo!”

Abri a porta, Fred me seguiu, parou ao lado do pássaro. Eu peguei aquele pequeno cadáver cheio de penas e atirei pela janela. O cadáver caiu no gramado do jardim de inverno do primeiro andar.

“Não fique chateado Fred! Quando eu enlouquecer de vez, comprarei uma casinha no campo pra nós e você vai poder caçar muitos passarinhos.”

Caminhei até a cozinha, bebi o primeiro copo d’água e tomei meu coquetel de vitaminas. Arrastei meu corpo até o banho, um banho bem quente. Olhei para o espelho, que estava embaçando aos poucos com o vapor. Encarei minhas olheiras… Malditos plantões…

12, 36… 48 horas e eu já não sei mais a qual mundo eu pertenço. Era isso que Irene me dizia. Que eu não falava nada com nada pós plantões extensos. Desde que nós largamos, eu enfrento cada plantão como uma facada no peito, nessa minha falsa paz dos trinta e poucos anos. Creio que já tenho 34 anos. Sabe? Parei de contar os anos. Só conto as balas da minha pistola, só conto projéteis, facadas, larvas e insetos em cadáveres. Quanto às balas, ainda permanecem intactas. Não precisei usar. Ainda…

A água quente cai no meu corpo como um bálsamo. É aquele momento que eu me recordo o quão bom é estar vivo. É isso cara! É isso. E o júbilo vem. E vem a lembrança de Irene nua, com os pequenos seios duros, fazendo graça, jogando água na minha cara. Meu pau fica duro. Ainda mais. Preciso aliviar, porque chega a doer. Dói. Como dói. Miro em todas as paredes do box. Com louvor, com comiseração. Uma vez li um livro ao qual o personagem perdeu a esposa, trancou-se no quarto, juntou todas as fotografias dela e passou o dia inteiro batendo punheta e esporrando nas fotografias. Cara doente… Eu pego o chuveirinho e lavo o box. Lavo a porra toda sabe? Nojento isso cara… E se for visita em casa? Vão achar que eu sou um tarado… mas faz tempo… que não vai visita em casa. Sou praticamente um solitário na selva de pedra.

Após o banho e gozo sagrado, coloco minhas vestes, o clássico jeans, camiseta preta lisa, meio larga para disfarçar a pistola na cintura, distintivo pendurado no peito, do lado de dentro. Pego meu moletom com capuz, vestirei quando descer do carro. Pego as chaves do carro, me despeço de Fred, que está a lamber as patinhas. Há um “q” de ódio felino no olhar. Deve ser porque eu atirei o pássaro pela janela. Ele não quis se esfregar nas minhas pernas. Ele sempre fazia isso, antes de eu sair. Mas não dessa vez. Irene também fazia isso. Quando ela estava brava comiga, ela me evitava. Não me beijava, não me tocava. Ela se transformava numa esfinge. Isso pra mim era um tapa na cara com luvas de pelica. Ela ficava em silêncio, sentada na poltrona, olhando fixamente para a minha pistola em cima da mesa. Quantas vezes ela, em seu silêncio, tentou me matar?

Desci pelo elevador, cheguei na garagem, entrei no carro e segui pela selva de pedra. Deixo meu carro no estacionamento, meio longe da delegacia. Vou à pé até o trabalho, no meio do povo, um anônimo, observando os corpos, que passam, que gritam, que exalam cheiros, desejos, pudores. Se tocam, se xingam, fluídos, cuspe, escarro, merda, urina. Muitos eu já encontrei no fim da jornada… O final da jornada deles não tem hora certa para acontecer.

“E aí Doutor! Como está! Como foi tua folga?”

“Estou revigorado agora Luis! Praticamente novo!” – (mentira, estou exausto)

Luís é o guarda do estacionamento ao qual largo meu carro. Trabalha lá desde o meu primeiro dia como policial. Ele me chama de Doutor. Eu não sou Doutor. Não estudei para ser Doutor. Tenho especializações, tenho mestrado… Mas estou longe de ser doutor. Mas pra ele, eu sou o cara, porque nas palavras dele, quem lida com defunto todo dia, tem que ser forte. E de fato… ele não está errado. Muitos deles, os cadáveres, me atormentam em silêncio, até hoje.

“Deus lhe acompanhe Doutor! Sei que é seu trabalho, mas espero que não matem ninguém hoje!”

Luis, todos os dias, durante dez anos, sempre me disse isso: “Deus lhe acompanhe Doutor!”

Eu não acredito muito em Deus, mas eu sempre respondo, como se fosse um ritual: ” Deus nos acompanhe Luis!”

Coloco meu moletom com capuz, meus fones de ouvido, mãos nos bolsos do moletão, distintivo escondido, arma presa na cintura, longe de vista. Sigo caminhando, atravessando multidões de gentes todos os dias. Sigo em direção ao terminal de ônibus, que sai num túnel cheio de ambulantes gritando mercadorias. De lá passo no centrão, e finalmente chego na delegacia.

Ao entrar no terminal, na faixa do meio ao qual o povo atravessa com pressa, sono e fome, o vendedor de feijões verdes sempre me oferecia dois canecos na promoção por seis reais. Eu apenas abanava a cabeça, sempre em negativa. Todo dia ele me oferecia, na ida e na volta. Nunca comprei. Nos cumprimentávamos sempre, e no olhar dele, tinha sempre a pergunta estampada:

“Quando esse maldito vai comprar feijões?”

Durante oito meses o rapaz chegava no terminal com a carriola de feijões verdes. Quando ele não estava no terminal, ele estava perto da galeria na avenida perto da guarda municipal. Sempre gritando: feijões frescooooooos.

Hoje, na ida, ele estava lá. Pochete na cintura, bermuda, sentado num pequeno banquinho, brincando com os pequenos feijões entre as mãos, gritando o anúncio.

Olhou pra mim, não disse nada. Apenas acenou.

No final da tarde, a jornada dele chegou ao fim.

Apagaram o cara. Execução nua e crua no meio do povo. Nome da vítima: Antônio César Sobral Villela, o Sobral. Eu tinha acabado de voltar de uma ocorrência crime sexual. Estupro. Mulher, jovem, 30 anos, abandonada num terreno baldio com um pedaço de madeira cheia de pregos enferrujados enfiada na vagina. Foi estuprada por mais de uma pessoa, evidências apontam quatro tipos de pegadas diferentes e o esperma também tinha diferentes texturas. Deixei as evidências no setor de provas, tomei uma água, um café e fui para o Terminal. O cadáver estava estirado no chão há quatro horas, aguardando perícia. Sabe como é…

Meu assistente estava nervoso, batendo as pernas na viatura, gesticulando enquanto segurava a prancheta.

“Multidão… Eu sempre odiei multidões. Aqui diz que mataram um vendedor ambulante de feijões no Terminal Central. Imagina o caos… Sabe como é… o espetáculo, o caos, os curiosos…

As velhas gritando: “Deus o tenha…. Misericórdia!”

Chegamos ao local, a cena porcamente isolada. Uma mulher estava roubando os feijões próximos à carriola, que aparentemente foi jogada. A poucos metros, o cadáver estava coberto com um pedaço de papelão segurado com pedras.

Respirei fundo, Coloquei um chiclete de menta a trabalhar na boca, pois de certa forma, me acalma. Multidões. Crimes no meio da multidão me dão desgosto e muito trabalho. Cenas porcamente isoladas. Crianças, mulheres, jovens, velhos, cachorros…

A mulher me viu parado ao lado dela, continuou roubando feijões, ao lado do defunto.

“Senhora, por favor, isso aqui é uma cena de crime, por favor, queira se retirar, pode ter sangue nesses feijões…”

“Preciso dar de comer para meus seis filhos. Você sabe o que é passar fome seu polícia? Sabe? Você sabe? Lavou tá novo! Entende? Você sabe? Sabe?”

Olhei para o policial militar que estava apenas olhando para o nada. Ele acordou pra vida e tirou a mulher de lá, pelos braços. Ela se juntou à multidão, segurando fortemente o saco de feijões, como se fosse um saco cheio de moedas de ouro. Me olhava com ódio:

“Você sabe seu polícia?”

Não. Não sei.

Olhei a cena, os feijões verdes espalhados na via, bem na faixa de pedestre do corredor de ônibus, na via central. Dois tiros à distância nas costas, um no flanco direito e um bem no meio da espinha. O assassino finalizou com um tiro encostado, na nuca.

“Chutaram os feijões dele Doutor. Que dó. Uma vez comprei dois canecos dele. Ele fez promoção, dois canecos por cinco. Levei para o meu pai, ele fez no fogão à lenha do rancho, com carne seca e costelinha de porco. Ele queria por coentro, mas coentro estraga as coisas.”

Lívia, fotógrafa técnico-policial tinha sempre algo muito relevante à dizer, ela sempre tentava, de uma forma até meio incorreta, deixar o ambiente um pouco alegre. Mas às vezes, Lívia falava por demais. Examinando os buracos percorridos pelo projétil, veio-me à cabeça o cheiro de feijão fresco, recém pronto, que minha mãe fazia todo sábado. Sempre me pego nas lembranças, que vão embora rápido, pois preciso ser o mais meticuloso possível. Parece sórdido, mas ao lembrar do cheiro de feijão fresco de minha mãe, brotou um sorriso alegre no meio da minha mastigação de menta. Maldita Livia!

Pagamento de dívida, ele era viciado, estava devendo na biqueira.

Era isso que a multidão dizia.

Deus o tenha

Misericórdia

Deus tenha piedade

Que morte horrível

No meio do povo

Eu saí correndo, o tiro quase me pegou

Que policial gato

Quando eu crescer quero ser CSI

Toda cena, toda multidão, um mundaréu de corpos vivos e falantes, amontoados, comendo pipocas invisíveis e brindando o caos e o sórdido. Velhas, velhos, homens, mulheres, adolescentes, crianças. Todos olhando nosso trabalho, tirando foto, dando palpite, rindo, chorando…

Valmires, agente do IML, me telefona dizendo que está com o rabecão cheio de defuntos, pois teve acidente de ônibus na estrada. Deixaria-os no IML e dentro de 30 minutos chegaria ao local.

Trinta minutos passaram, depois de duas horas e meia de perícia, finalizo meu trabalho. Ao longe, Ramires, com dificuldade tenta entrar no terminal. Depois, mais dificuldade para manobrar. Eu observava, a militar pedia para a multidão se afastar e parar de tirar fotos. A mulher da sacola de feijões roubados me cutucou o braço:

“O que vão fazer com os feijões?”

Ignorei, me afastei. Isso me mata. Aos poucos. Dou um riso. Por dentro, trágico, triste.

O ser humano… o bicho humano… Individualista… Arrogante… Fodido

Mas sagrado.

Deus te abençoe Doutor

É isso que diz o Luiz, todos os dias.

Os feijões À mesa, família, seis crianças comendo, afoitas.

Misericórdia

Deus a Tenha

Deus nos acompanhe

Valmires chegou, posicionou o rabecão, desceu com as luvas já calçadas,

E aí Doutor! Quantos feijões hein! Meu pai sempre fez esse feijão com carne de porco e coentro… Se não fosse o sangue, daria uma boa panelada né?

Valmires, junto com Caio, outro agente, abrem a porta do rabecão, e o fedor de defunto passado invade o local.

Deus o tenha

Misericórdia, que fedor

Deus tende piedade

Jesus Cristo

Como eles aguentam

Que horror…

Olho para os feijões espalhados no chão, vários deles manchados com sangue coagulado. Suspirei fundo, peguei minha maleta. Ao tentar sair da cena, a mulher dos feijões me cutucou de novo.

“Seu polícia, posso pegar os feijões?”

Eu apenas olhei, suspirei, pensei nos muitos laudos a fazer. Apenas olhei bem fundo nos olhos da pobre mulher.

Nada falei.

“Deus te abençoe e te acompanhe seu polícia!”

Entrei na viatura. Fiquei em silêncio observando os últimos trabalhos. Ao retirarem a fita de isolamento, o espetáculo continuou. Os feijões sendo colhidos um a um, como se fosse uma grande mesa de família, ao qual o pai ou a mãe escolhem os melhores feijões. Estava ali, a grande mesa, a grande irmandade, a fome, o desespero, um mundaréu de gentes, corpos vivos…

Uma grande mesa. O ser humano… o bicho humano, fodido… mas sagrado.

 

O Silêncio

Perante a cólera nada é mais conveniente do que o silêncio. (SAFO)

 

Cheguei exausto no ponto de ônibus. Ando completamente estressado, conversando alto com meus próprios silêncios. A ansiedade gritando, ferindo minha mente com prazos e resoluções estouradas. Todo som é uma tormenta, mas o médico com cara de personagem alucinado de desenho animado diz que o que eu tenho é apenas cansaço.

-Você precisa descansar Anderson! Tirar umas férias, namorar, fazer o que ama.

Namorar… NA-MO-RAR

Namorar me deixa ainda mais estressado porque eu sempre tenho de corresponder às expectativas de alguém e eu nunca sou ou serei bom ou bastante para elas. No máximo um cara bonito pra elas mostrarem para as amigas. Ao final, apenas sento na mesa, coço minha barba e fumo um cigarro vendo elas irem embora sem nunca mais voltar. Pratos de comida à mesa, taças vazias, um gozo na boca e outra nos orifícios e mando elas para o limbo do esquecimento, porque nunca vou ser o suficientemente bom pra elas, porque geralmente elas acham que eu sou O CARA.

Mas eu não sou.

Será que eu já fui? Fico perguntando. Lili dizia que eu era encantador. Passados alguns meses ela mudou de opinião e disse para meio mundo que eu fiz da vida dela um inferno e que ela não queria mais olhar na minha cara. Desde então eu deixei a barba crescer, assim ela não tem de olhar para a mesma cara quando nos cruzamos no corredor do fórum. Falando em pelos na cara, dizem que o homem fica mais bonito. De fato, apareceu mais mulheres na minha vida, mas a barba apenas garantiu mais corpos. O tempo era o mesmo, os motéis também, os vinhos, copos e talheres à mesa. Depois, o vazio.. Mas é bom coçar a barba enquanto eu fumo, pensando no que eu fiz de errado. Foram 10 minutos de caminhada do fórum ao ponto de ônibus. Nestes dez minutos eu pensei em tudo isso. Eu só queria silêncio. Eu poderia pensar nas táticas de meditação que minha terapeuta passou. Respira fundo, encher os pulmões, reter o ar pelo dobro de tempo que levou para aspirar o ar, soltar o ar neste mesmo tempo, depois fazer três hiperventilações. Eu fiz. Minha barriga doeu. Fiquei mais ansioso. Fui interrompido. Por uma criança gritando. As palavras de veludo da terapia, as recomendações da terapeuta foram cortadas pela voz estridente indisciplinada.

Acendi um cigarro. A menina continuava gritando. A dona da prole incitava a criança, que estava gritando com a vó que tentava falar ao celular, gesticulando para que a menina ficasse quieta.

– Ooooooooooooo vóoooooooooooooooooooooooooooo. Vóoooooooooooooooooooooooo

A mãe ria, achando engraçado ver a vó da criança irritada.

-Vai lá, grita de novo, deixa a vó irritada!

-Oooooooooooo vóoooooooooooooooooooooooo… olha pra mim vóoooooooooooooo!!!

Gritos. Gritos. Gritos. Ela me irritava, já tinha os meus próprios gritos. Acendi outro cigarro. O ônibus estava atrasado. O lugar era quase ermo, o fórum ficava numa área afastada da cidade, fora o barulho de alguns carros, ônibus e advogados tagarelas, geralmente eu conseguia lidar com o barulho que ali existia. Mas ali, naquele momento os gritos da menina que além de gritar, ria estridentemente, estava cortando-me o fino fio da paciência. Eu olhei ao redor e vi as pessoas em silêncio, visivelmente incomodadas com o próprio silêncio sendo cortado por uma pirralha de talvez uns 7,8 anos no máximo.

-Vai lá filha, grita pra vovó ficar irritada.

-Ooooooooooo vóoooo!!! Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh, olha pra mim vó! Oooooooooooooooooooooo vó… Vem me pegar!

Os berros da criança. Agudos, irritando. A fumaça do meu cigarro entrava nos meus pulmões queimando. A voz ensurdecedora da criança consumia minha paciência, minha paz, meus silêncios.

A menina passava correndo ao meu lado, no beira fio da calçada.

Gritos, gritos, gritos

Ouvi meus próprios gritos, ouvi os gritos das mulheres que eu peguei enquanto eu me concentrava em dar prazer. Ouvi os gritos dos meus primos apanhando após quebrar a janela da vizinha, ouvi os gritos da minha velha mãe chorando na beirada do caixão do meu pai, aquele desgraçado. Ouvi os gritos de minha irmã que gritava enquanto meu ex-cunhado batia nela sem motivo.

Ela passou correndo novamente. Gritando. Veio um ônibus. Apenas um empurrão. Não teve tempo para freios, nem reações. Empurrei a pirralha na frente do ônibus.

De repente tudo ficou silencioso numa argamassa de sangue, vísceras e ossos. Ao menos pra mim. Pra sempre.

 

 

Engole

“Vede a criança, rodeada de porcos a grunhir,
Desarmada, encolhendo os dedos dos pés.
Chora, não sabe fazer mais nada senão chorar.
Será alguma vez capaz de ficar de pé e de caminhar?
(Friedrich Nietzsche, in “A Gaia Ciência”)

Quando eu era menino, meu pai tinha uma criação de porcos. Nós éramos em três meninos e uma menina. Quando não tínhamos obediência para com ele, ele nos mandava para o chiqueiro de porcos e lá tínhamos de ficar o dia inteiro, no meio da sujeira e dos grunhidos. Nosso pai sempre foi muito rígido com tudo, até com ele mesmo.  Nunca nos deu um abraço, um elogio. Nada. Ele sentava à mesa na hora das refeições e entrelaçávamos as mãos para as orações. As mãos de minha mãe sempre tremiam. Eu achava que elas tremiam apenas em dias chuvosos, ou prenúncio de chuva, pois ela sempre dizia:

“Uma tempestade se aproxima querido. Eu tenho medo de tempestade”.

Depois, com a idade, descobri que minha mãe sempre tremia, mesmo em dias de céu limpo e ensolarados. Ela tremia, em todos os momentos aos quais meu pai estava por perto.  As mãos dela era de uma delicadeza áspera, mas ao mesmo tempo cheia de ternura, ainda que as mãos tremessem…

De medo.

Hoje eu entendo…

Fazíamos as orações e comíamos sempre religiosamente no mesmo horário. Após as orações mantínhamos os olhos baixos no prato de comida e as bocas ocupadas, mastigando e bebendo em silêncio. Um dia o silêncio foi cortado porque minha irmã saiu da mesa e não pediu licença. Ela foi dormir com a boca sangrando e com o rosto com um grande hematoma que demorou dias para sair. Um único tapa, e o sermão enérgico e cheio de ódio de meu pai:

– Engole o teu choro e peça desculpas agora…

-Mas… Mas…

-Engole…

-Des-des-culpa pai…

-Engole teu choro, fale mais alto. Eu não ouvi. Vocês ouviram?

Eu e meus irmãos engolíamos a sopa rasa à seco e em silêncio.

-Não ouvíamos… Mais alto irmã… Não ouvimos.

Não ousávamos contrariar os sermões do pai. Se ele dizia que não ouviu nada, todos nós concordávamos com ele.

– Des-des-des-cul-pa.

– Suba. E você vai limpar o chiqueiro amanhã. Suba em silêncio. Engole esse teu choro que se eu te escutar chorando de novo vai apanhar até desmaiar.

Naquele dia a sopa rala foi ainda mais seca que as outras. O pão, feito à tarde, parecia que foi feito dias atrás, deixado ao ar livre, até endurecer. Comíamos em silêncio, as orações eram o único momento ao qual escutávamos nossas próprias vozes.

No dia seguinte, fui procurar minha irmã no chiqueiro. Meu pai ordenou que ela o lavasse e trocasse a lavagem velha dos porcos. Os grunhidos dos porcos sujos e imensos eram altos, a imundície continuava lá, espalhada, as larvas consumiam o resto de lavagem. Minha irmã estava encolhida num canto, com os joelhos abraçados, chorava alto, bem alto, mas os grunhidos dos porcos abafavam o choro. Ela sempre fazia isso. Chorava no meio dos porcos, da imundície, dos grunhidos, pois no meio dos porcos, ela não precisava engolir o choro.

-Engole…

-Engole… Issoooo, engole tudo…

-Engole… engole. Boa garota…

-Engula. Engula tudo…

-Engole sem cuspir? Até a última boca, sem chorar?

Palavras recorrentes ditas à minha irmã quando abandonou a casa aos 17 anos e foi morar na cidade, num cortiço-prostíbulo, vendendo o corpo por 30 reais a hora, para garantir a sobrevivência.

Ela engolia o choro, engolia álcool barato, engolia fumaça de cigarros paraguaios, engolia fumaça de maconha para relaxar, engolia as porras, engolia o orgulho, mas nunca mais voltou pra casa e para os sermões do pai.