Capítulo I
“O bicho humano, fodido, mas sagrado” – Eduardo Galeano
Cinco horas da manhã. Estou estirado na cama depois de uma noite estranha com um misto de frio e calor. Sabe? A noite bipolar? Aquela que primeiro te esquenta, depois te congela. Por hora, me cubro até a cabeça com meu cobertor, outra, estou quase nu, apenas com os pés cobertos. O gato, Fred, dorme ao meu lado abrindo e fechando os olhos amarelos a cada movimento que eu faço. Apenas eu e Fred. Irene me abandonou, por causa de minhas neuras infindáveis. Ao lado da cama, ficou um abismo escuro e fundo, um espaço incompreendido lotado de saudade e cheiro de jasmim. O perfume de jasmim que eu sempre presenteei Irene repousa na cabeceira da cama, precisamente ao lado esquerdo. Todos os dias, antes de dormir, eu borrifo três vezes nos lençóis e no travesseiro. Eu sei. Isso é patético. Não existe nada mais patético do que um homem com saudades. Devaneios à parte, fico deitado olhando para o teto, o ventilador está girando espalhando bafo quente de homem suado e pelos de gato. Fred saiu do meu lado, foi em direção à porta da varanda, do meu apartamento pequeno, porém confortável, arrumado numa perfeição que dói.
Fred está parado, olhando fixamente para a varanda por trás da porta de correr de vidro. Ele está com olhinhos afoitos. Olha pra mim, miando pede para sair. Chega na beirada da cama, se estica e esfrega a cabeça no meu braço estirado…
O que tem ali Fred? Quer que eu abra a porta né?
Estou tentando lidar com minhas centenas de neuroses. Nada nem ninguém vai entrar pela varanda do décimo quinto andar. Eu sempre acho que um dia meu algoz entrará pela varanda e me matará enquanto eu durmo, colocando as mãos funestas no meu pescoço depois de envenenar meu gato com bolas de peixe recheadas com chumbinho. Vou ser estrangulo de forma rápida e silenciosa, sem nem ao menos dar tempo de eu pegar minha Magnum automática na cabeceira da cama e mandar o meu pretensioso assassino ou assassina para os quintos dos infernos. Minha visão vai escurecer aos poucos enquanto meu pescoço é apertado, verei borrões, amaldiçoarei minha vida e as pessoas que eu amei. Enquanto isso, os órgãos de Fred vão ser liquefeitos com a ação do veneno. Após me matarem, tenho certeza que irei direto para o inferno. Será? Será? Será?
Será que o inferno existe mesmo, será que o Inferno é esse mundo que vivemos agora, eu, você… Uma punição de Deus sabe quem… Deus, Deus… Deaux… Olho para o lado, o gato continua ensandecido, agora arranhando as patinhas no vidro da porta. Sento na beirada da cama, esfrego a cara, os olhos, bocejo, dou uma coçada nas bolas e observo Fred novamente…
“Fred… O que tem aí Fred? Não existem ratos aqui!”
O último, Irene matou com uma vassourada. Era do vizinho, que tinha um criação de ratos e eles proliferaram pelo condomínio. Irene foi tremendo, feito vara verde, matou o rato. Paaaaaaaaa… o rato agonizando e aqueles olhinhos de misericórdia. Ela ficou chorosa a semana toda por causa de um mísero rato. Eu matei vários no biotério da faculdade. Era bom aquele tempo. Os cadáveres eram apenas corpos destinados à estudos, coelhos e ratos.
Cheguei perto da varanda, acendi a luz. Era um pássaro, um pássaro agonizando, batendo as asas, cada vez de forma mais lenta. Passei cinco minutos observando a cena, até que o bater das asas cessou. A primeira Morte. O primeiro cadáver do dia.
“Nada de novo Fred! Nada de novo!”
Abri a porta, Fred me seguiu, parou ao lado do pássaro. Eu peguei aquele pequeno cadáver cheio de penas e atirei pela janela. O cadáver caiu no gramado do jardim de inverno do primeiro andar.
“Não fique chateado Fred! Quando eu enlouquecer de vez, comprarei uma casinha no campo pra nós e você vai poder caçar muitos passarinhos.”
Caminhei até a cozinha, bebi o primeiro copo d’água e tomei meu coquetel de vitaminas. Arrastei meu corpo até o banho, um banho bem quente. Olhei para o espelho, que estava embaçando aos poucos com o vapor. Encarei minhas olheiras… Malditos plantões…
12, 36… 48 horas e eu já não sei mais a qual mundo eu pertenço. Era isso que Irene me dizia. Que eu não falava nada com nada pós plantões extensos. Desde que nós largamos, eu enfrento cada plantão como uma facada no peito, nessa minha falsa paz dos trinta e poucos anos. Creio que já tenho 34 anos. Sabe? Parei de contar os anos. Só conto as balas da minha pistola, só conto projéteis, facadas, larvas e insetos em cadáveres. Quanto às balas, ainda permanecem intactas. Não precisei usar. Ainda…
A água quente cai no meu corpo como um bálsamo. É aquele momento que eu me recordo o quão bom é estar vivo. É isso cara! É isso. E o júbilo vem. E vem a lembrança de Irene nua, com os pequenos seios duros, fazendo graça, jogando água na minha cara. Meu pau fica duro. Ainda mais. Preciso aliviar, porque chega a doer. Dói. Como dói. Miro em todas as paredes do box. Com louvor, com comiseração. Uma vez li um livro ao qual o personagem perdeu a esposa, trancou-se no quarto, juntou todas as fotografias dela e passou o dia inteiro batendo punheta e esporrando nas fotografias. Cara doente… Eu pego o chuveirinho e lavo o box. Lavo a porra toda sabe? Nojento isso cara… E se for visita em casa? Vão achar que eu sou um tarado… mas faz tempo… que não vai visita em casa. Sou praticamente um solitário na selva de pedra.
Após o banho e gozo sagrado, coloco minhas vestes, o clássico jeans, camiseta preta lisa, meio larga para disfarçar a pistola na cintura, distintivo pendurado no peito, do lado de dentro. Pego meu moletom com capuz, vestirei quando descer do carro. Pego as chaves do carro, me despeço de Fred, que está a lamber as patinhas. Há um “q” de ódio felino no olhar. Deve ser porque eu atirei o pássaro pela janela. Ele não quis se esfregar nas minhas pernas. Ele sempre fazia isso, antes de eu sair. Mas não dessa vez. Irene também fazia isso. Quando ela estava brava comiga, ela me evitava. Não me beijava, não me tocava. Ela se transformava numa esfinge. Isso pra mim era um tapa na cara com luvas de pelica. Ela ficava em silêncio, sentada na poltrona, olhando fixamente para a minha pistola em cima da mesa. Quantas vezes ela, em seu silêncio, tentou me matar?
Desci pelo elevador, cheguei na garagem, entrei no carro e segui pela selva de pedra. Deixo meu carro no estacionamento, meio longe da delegacia. Vou à pé até o trabalho, no meio do povo, um anônimo, observando os corpos, que passam, que gritam, que exalam cheiros, desejos, pudores. Se tocam, se xingam, fluídos, cuspe, escarro, merda, urina. Muitos eu já encontrei no fim da jornada… O final da jornada deles não tem hora certa para acontecer.
“E aí Doutor! Como está! Como foi tua folga?”
“Estou revigorado agora Luis! Praticamente novo!” – (mentira, estou exausto)
Luís é o guarda do estacionamento ao qual largo meu carro. Trabalha lá desde o meu primeiro dia como policial. Ele me chama de Doutor. Eu não sou Doutor. Não estudei para ser Doutor. Tenho especializações, tenho mestrado… Mas estou longe de ser doutor. Mas pra ele, eu sou o cara, porque nas palavras dele, quem lida com defunto todo dia, tem que ser forte. E de fato… ele não está errado. Muitos deles, os cadáveres, me atormentam em silêncio, até hoje.
“Deus lhe acompanhe Doutor! Sei que é seu trabalho, mas espero que não matem ninguém hoje!”
Luis, todos os dias, durante dez anos, sempre me disse isso: “Deus lhe acompanhe Doutor!”
Eu não acredito muito em Deus, mas eu sempre respondo, como se fosse um ritual: ” Deus nos acompanhe Luis!”
Coloco meu moletom com capuz, meus fones de ouvido, mãos nos bolsos do moletão, distintivo escondido, arma presa na cintura, longe de vista. Sigo caminhando, atravessando multidões de gentes todos os dias. Sigo em direção ao terminal de ônibus, que sai num túnel cheio de ambulantes gritando mercadorias. De lá passo no centrão, e finalmente chego na delegacia.
Ao entrar no terminal, na faixa do meio ao qual o povo atravessa com pressa, sono e fome, o vendedor de feijões verdes sempre me oferecia dois canecos na promoção por seis reais. Eu apenas abanava a cabeça, sempre em negativa. Todo dia ele me oferecia, na ida e na volta. Nunca comprei. Nos cumprimentávamos sempre, e no olhar dele, tinha sempre a pergunta estampada:
“Quando esse maldito vai comprar feijões?”
Durante oito meses o rapaz chegava no terminal com a carriola de feijões verdes. Quando ele não estava no terminal, ele estava perto da galeria na avenida perto da guarda municipal. Sempre gritando: feijões frescooooooos.
Hoje, na ida, ele estava lá. Pochete na cintura, bermuda, sentado num pequeno banquinho, brincando com os pequenos feijões entre as mãos, gritando o anúncio.
Olhou pra mim, não disse nada. Apenas acenou.
No final da tarde, a jornada dele chegou ao fim.
Apagaram o cara. Execução nua e crua no meio do povo. Nome da vítima: Antônio César Sobral Villela, o Sobral. Eu tinha acabado de voltar de uma ocorrência crime sexual. Estupro. Mulher, jovem, 30 anos, abandonada num terreno baldio com um pedaço de madeira cheia de pregos enferrujados enfiada na vagina. Foi estuprada por mais de uma pessoa, evidências apontam quatro tipos de pegadas diferentes e o esperma também tinha diferentes texturas. Deixei as evidências no setor de provas, tomei uma água, um café e fui para o Terminal. O cadáver estava estirado no chão há quatro horas, aguardando perícia. Sabe como é…
Meu assistente estava nervoso, batendo as pernas na viatura, gesticulando enquanto segurava a prancheta.
“Multidão… Eu sempre odiei multidões. Aqui diz que mataram um vendedor ambulante de feijões no Terminal Central. Imagina o caos… Sabe como é… o espetáculo, o caos, os curiosos…
As velhas gritando: “Deus o tenha…. Misericórdia!”
Chegamos ao local, a cena porcamente isolada. Uma mulher estava roubando os feijões próximos à carriola, que aparentemente foi jogada. A poucos metros, o cadáver estava coberto com um pedaço de papelão segurado com pedras.
Respirei fundo, Coloquei um chiclete de menta a trabalhar na boca, pois de certa forma, me acalma. Multidões. Crimes no meio da multidão me dão desgosto e muito trabalho. Cenas porcamente isoladas. Crianças, mulheres, jovens, velhos, cachorros…
A mulher me viu parado ao lado dela, continuou roubando feijões, ao lado do defunto.
“Senhora, por favor, isso aqui é uma cena de crime, por favor, queira se retirar, pode ter sangue nesses feijões…”
“Preciso dar de comer para meus seis filhos. Você sabe o que é passar fome seu polícia? Sabe? Você sabe? Lavou tá novo! Entende? Você sabe? Sabe?”
Olhei para o policial militar que estava apenas olhando para o nada. Ele acordou pra vida e tirou a mulher de lá, pelos braços. Ela se juntou à multidão, segurando fortemente o saco de feijões, como se fosse um saco cheio de moedas de ouro. Me olhava com ódio:
“Você sabe seu polícia?”
Não. Não sei.
Olhei a cena, os feijões verdes espalhados na via, bem na faixa de pedestre do corredor de ônibus, na via central. Dois tiros à distância nas costas, um no flanco direito e um bem no meio da espinha. O assassino finalizou com um tiro encostado, na nuca.
“Chutaram os feijões dele Doutor. Que dó. Uma vez comprei dois canecos dele. Ele fez promoção, dois canecos por cinco. Levei para o meu pai, ele fez no fogão à lenha do rancho, com carne seca e costelinha de porco. Ele queria por coentro, mas coentro estraga as coisas.”
Lívia, fotógrafa técnico-policial tinha sempre algo muito relevante à dizer, ela sempre tentava, de uma forma até meio incorreta, deixar o ambiente um pouco alegre. Mas às vezes, Lívia falava por demais. Examinando os buracos percorridos pelo projétil, veio-me à cabeça o cheiro de feijão fresco, recém pronto, que minha mãe fazia todo sábado. Sempre me pego nas lembranças, que vão embora rápido, pois preciso ser o mais meticuloso possível. Parece sórdido, mas ao lembrar do cheiro de feijão fresco de minha mãe, brotou um sorriso alegre no meio da minha mastigação de menta. Maldita Livia!
Pagamento de dívida, ele era viciado, estava devendo na biqueira.
Era isso que a multidão dizia.
Deus o tenha
Misericórdia
Deus tenha piedade
Que morte horrível
No meio do povo
Eu saí correndo, o tiro quase me pegou
Que policial gato
Quando eu crescer quero ser CSI
Toda cena, toda multidão, um mundaréu de corpos vivos e falantes, amontoados, comendo pipocas invisíveis e brindando o caos e o sórdido. Velhas, velhos, homens, mulheres, adolescentes, crianças. Todos olhando nosso trabalho, tirando foto, dando palpite, rindo, chorando…
Valmires, agente do IML, me telefona dizendo que está com o rabecão cheio de defuntos, pois teve acidente de ônibus na estrada. Deixaria-os no IML e dentro de 30 minutos chegaria ao local.
Trinta minutos passaram, depois de duas horas e meia de perícia, finalizo meu trabalho. Ao longe, Ramires, com dificuldade tenta entrar no terminal. Depois, mais dificuldade para manobrar. Eu observava, a militar pedia para a multidão se afastar e parar de tirar fotos. A mulher da sacola de feijões roubados me cutucou o braço:
“O que vão fazer com os feijões?”
Ignorei, me afastei. Isso me mata. Aos poucos. Dou um riso. Por dentro, trágico, triste.
O ser humano… o bicho humano… Individualista… Arrogante… Fodido
Mas sagrado.
Deus te abençoe Doutor
É isso que diz o Luiz, todos os dias.
Os feijões À mesa, família, seis crianças comendo, afoitas.
Misericórdia
Deus a Tenha
Deus nos acompanhe
Valmires chegou, posicionou o rabecão, desceu com as luvas já calçadas,
E aí Doutor! Quantos feijões hein! Meu pai sempre fez esse feijão com carne de porco e coentro… Se não fosse o sangue, daria uma boa panelada né?
Valmires, junto com Caio, outro agente, abrem a porta do rabecão, e o fedor de defunto passado invade o local.
Deus o tenha
Misericórdia, que fedor
Deus tende piedade
Jesus Cristo
Como eles aguentam
Que horror…
Olho para os feijões espalhados no chão, vários deles manchados com sangue coagulado. Suspirei fundo, peguei minha maleta. Ao tentar sair da cena, a mulher dos feijões me cutucou de novo.
“Seu polícia, posso pegar os feijões?”
Eu apenas olhei, suspirei, pensei nos muitos laudos a fazer. Apenas olhei bem fundo nos olhos da pobre mulher.
Nada falei.
“Deus te abençoe e te acompanhe seu polícia!”
Entrei na viatura. Fiquei em silêncio observando os últimos trabalhos. Ao retirarem a fita de isolamento, o espetáculo continuou. Os feijões sendo colhidos um a um, como se fosse uma grande mesa de família, ao qual o pai ou a mãe escolhem os melhores feijões. Estava ali, a grande mesa, a grande irmandade, a fome, o desespero, um mundaréu de gentes, corpos vivos…
Uma grande mesa. O ser humano… o bicho humano, fodido… mas sagrado.